A inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 10.198/2011

O jornal Estado de Minas datado de 09/06/2011 publicou matéria em que informa ter sido sancionada em Belo Horizonte a Lei Municipal nº 10.198, de 7 de junho de 2011, a qual instituiu a Certidão Negativa de Violação aos Direitos do Consumidor – CNVDC – para pessoas físicas ou jurídicas que participam de licitações neste Município (http://bit.ly/mQGf9L).

O art. 1º da mencionada Lei assim dispõe:

Art. 1º – Fica instituída, no âmbito da Administração Pública Municipal, a Certidão Negativa de Violação aos Direitos do Consumidor – CNVDC -, que será exigida de pessoas físicas ou jurídicas que participem de licitações, sob qualquer uma de suas modalidades, ou que negociem habitualmente com a Prefeitura de Belo Horizonte.

A autora do projeto que deu origem à Lei, Vereadora Maria Lúcia Scarpelli, justificou a proposta da seguinte maneira:

“O objetivo do PL é impedir que fornecedores de produtos e serviços que reiteradamente lesam os consumidores, sem terem a preocupação de reparar os danos, tenham a possibilidade de prestar serviços ou fornecer produtos à Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.

A Administração Pública deve ter a cautela de se cercar dos melhores prestadores de serviço e fornecedores de produtos, porque se tais empresas lesam o consumidor, provavelmente lesarão o Poder Público, com produtos e serviços de má qualidade, muito aquém do que foi acordado. Assim, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte se resguardará de ônus nos Processos Licitatórios, e na contratação de produtos e serviços, gozando por completo dos benefícios contratados”.

Em que pese a boa intenção da proposta, ela é evidentemente inconstitucional, e deveria assim ter sido declarada quando de sua análise pela Comissão de Legislação e Justiça da Câmara dos Vereadores.

A inconstitucionalidade da mencionada lei reside na incompetência absoluta do Município para legislar sobre a matéria, bem como na impossibilidade de se criar uma nova exigência para a habilitação dos licitantes.

Quanto à incompetência do Município de Belo Horizonte, é necessário que se veja o disposto no art. 22, inc. XXVII, da Constituição da República de 1988:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;

Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

Como se pode ver, o art. 22 autoriza apenas o ente federado ali designado, a União, a legislar sobre normas gerais de licitação e contratação. Em sendo necessário, lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre especificidades acerca do tema. Nota-se que os Municípios não foram em momento algum incluídos dentre os entes federados competentes para legislar em matéria de licitação e contratação pública.

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes comenta a mencionada limitação constitucional:

“Sobre o caso, descabe qualquer interpretação construtiva, ampliativa ou analógica que busque assegurar competência legislativa a esses entes não citados, porque a Constituição Federal, expressamente, refere-se aos mesmos em diversas outras passagens, inclusive bastante próximas, como é o caso dos arts. 23, caput e seu parágrafo único, e 24, entre outros. A literalidade, no caso, não pode ser elastecida para alcançar pessoas jurídicas de direito público que não são citadas. Este é um típico caso em que vale ressuscitar o brocardo cum in verbis ambiguitas est, nom debet admitti voluntatis quaestio [quando nas palavras não existe ambigüidade, não se deve admitir pesquisa acerca da vontade ou intenção]”[1].

Sobre esta questão o Tribunal de Justiça de Minas Gerais também já teve a oportunidade de se manifestar, o que fez nos seguintes termos:

2. “Há relevância nos fundamentos da representação, relativamente à inconstitucionalidade da Lei Municipal n° 4.136, de 25 de novembro de 2002, que dispõe sobre a contratação de mão-de-obra por empresas vencedoras de processos licitatórios, porque é da competência exclusiva da União legislar sobre normas gerais de licitação e de contratação, por força do disposto na art. 22, XXVII, da Constituição Federal”[2].

Portanto, apenas nesta análise literal da Constituição já se conclui pela incompetência do Município de Belo Horizonte para legislar sobre normas gerais de licitações e contratos públicos, motivo pelo qual é evidente a incompatibilidade da Lei Municipal nº 10.198/2011 com o art. 22, inc. XXVII, da CR/88.

Ressalva-se que nada impede que o Município legisle sobre o procedimento a ser utilizado em suas licitações, ou seja, sobre como as realizará, por ser, esta sim, matéria de interesse local e ter caráter meramente supletivo, conforme prevê o art. 118 da Lei nº 8.666/93[3].

Ao emitir parecer opinando pela constitucionalidade da lei municipal, o vereador Sérgio Fernando, relator do PL na Comissão de Legislação e Justiça, expôs o seguinte:

“In casu, não ha falar em inconstitucionalidade, pois, o PL em seu artigo 1° ao fazer menção às licitações, não tratou das questões ou matérias pertinentes a legislação federal – Lei 8.666, de 21 de junho de 1993.

A exigência sugerida pela proposição no artigo acima mencionado poderia, como pode, ser objeto de Edital respectivo. No entanto, entendeu por bem a legisladora proceder a exigência via norma municipal, fato que não vislumbro nenhum impedimento”.

Entende o parlamentar que o art. 1º da Lei não seria norma de caráter geral, mas sim de interesse local, motivo pelo qual não teria tratado das matérias pertinentes à Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (nº 8.666/93). Admite o relator até mesmo que tal exigência poderia constar do edital do certame.

Porém, a matéria trazida pela Lei Municipal 10.198/2011 invade sim a competência privativa da União, pois trata do instituto da “habilitação”, que é a titularidade, pela pessoa física ou jurídica, das condições do direito de licitar.

Os documentos de habilitação se incluem dentre as normas de caráter geral, posto que se encontram arrolados taxativamente no art. 27, da Lei nº 8.666/93, o qual diz, em seu caput, que para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a habilitação jurídica; qualificação técnica; qualificação econômico-financeira; regularidade fiscal e ao cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da CR/88.

Logo, exigir Certidão Negativa de Violação aos Direitos do Consumidor da pessoa física ou jurídica como condição para participar das licitações promovidas pelo Município de Belo Horizonte é exigir um novo documento de habilitação não previsto na Lei Geral de Licitações e Contratos. Neste caso, o Município ultrapassou, e muito, sua competência meramente supletiva, concorrendo em condições de igualdade com a esfera federal, o que torna indubitável a inconstitucionalidade da Lei nº 10.198/2011.

Sob o aspecto material, a Lei aprovada pela Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte também se mostra incompatível com os preceitos constitucionais.

O art. 37, inc. XXII, da CR/88, preconiza que:

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

A expressão constitucional acima sublinhada, e muito pouco observada, diz que a administração não poderá nunca exigir dos licitantes qualquer documento não essencial à comprovação de garantia do cumprimento das obrigações. Isso significa que, em matéria de licitações, o mínimo exigível é o máximo exigível.

A Lei nº 8.666/93 se encarregou de dizer quais documentos podem ser considerados indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, arrolando-os nos artigos 30 e 31. A relação de documentos ali prevista é o máximo que a Administração pode exigir do licitante, sem jamais poder ultrapassar aquele limite, seja no edital, seja em qualquer outro regulamento. E, dentre esses documentos, não está prevista a certidão comprobatória de não violação a direitos do consumidor, bem como não está entre os relativos à regularidade fiscal ou habilitação jurídica.

Logo, ao criar uma nova exigência habilitatória que a Lei Federal não considerou essencial, nos termos da Constituição, o Município de Belo Horizonte fere o art. 37, inc. XXII, da CR/88. É, pois, inconstitucional, também sob esse prisma, a Lei Municipal recentemente aprovada.

Inobstante a boa fé que motivou a proposta, não se pode presumir que os fornecedores de produtos e serviços, que estejam arrolados como “maus” fornecedores no Procon Municipal, deixarão de cumprir suas obrigações num eventual contrato com a Administração Pública.

Ao contrário, a proposta poderá até mesmo inviabilizar a prestação de determinados serviços, como, por exemplo, os de telefonia. É de conhecimento público que as empresas de telefonia móvel são, indiscriminadamente, umas das maiores causadoras de reclamações nos Procons de todo o Brasil. A se partir do pressuposto legal belorizontino, o Município não poderá celebrar contratos de telefonia com nenhuma delas. O mesmo exemplo vale para bancos, concessionárias de automóveis e etc.

O fato é que a exigência trazida pela Lei Municipal nº 10.198/2011 não garante o cumprimento das obrigações assumidas contratualmente e nem faz concluir que as empresas cadastradas negativamente no Procon são incapazes de prestar serviços adequados ao Poder Público.

Ademais, é importante ressaltar uma consequência talvez impensada na formulação da proposta: se para licitar e contratar com a Administração Pública municipal a empresa deve ter uma certidão negativa de reclamações de consumidores, para excluí-la do certame bastará que uma empresa concorrente, motivada pela má-fé, formule por interposta pessoa uma reclamação no Procon que a impeça de obter a malsinada certidão. Teríamos, então, na nova exigência, uma ferramenta muito útil aos maus licitantes, mas pouquíssimo útil à Administração Pública.

Para a conclusão, vem muito bem a calhar a lição de Ivan Barbosa Rigolin, quem diz ser necessário que a Administração se conscientize que:

“não deve exagerar nesta leviana e fútil inutilidade que é o rigorismo quanto a habilitação nas licitações.

Dizemos rigorismo e não rigor, no sentido pejorativo mesmo, porque é isso que ocorre a todo tempo, observando-se que o Poder Público, em larga proporção e sem generalizar de todo, ainda não se libertou daquela antiga mentalidade, que é retrógrada, primitiva, tosca, rude, permeada pela indisfarçável insegurança sobre o direito aplicável ou pela preguiçosa má-vontade em abrir os olhos para o que interessa nos negócios públicos, de que a Administração precisa conhecer quem contrata.

Se a Administração precisa de fato conhecer quem contrata, o fato é que é apenas em muito poucos aspectos que os precisa conhecer, e nunca, jamais em tempo algum, naquela infinidade de quinquilharias documentais e burocráticas que a Lei de Licitações permite exigir. Não se deve perder a Administração licitadora naquele cipoal de documentos que a lei apenas permite exigir, sem jamais exigir que o edital exija de fato”[4].

A passagem acima se resume muito bem no texto de Marcos Troyjo, publicado no caderno Opinião do Estado de Minas de 14/06/2011: “eis o Estado contemporâneo em sua pior combinação: gigantismo burocrático voltado à conquista de nano-objetivos”.

A Administração Pública necessita urgentemente libertar-se do péssimo hábito de criar e procurar minúcias, preciosismos e futilidades que nada contribuem com uma boa e eficiente contratação, mas que servem apenas e tão somente a “espantar concorrentes”, burocratizar o procedimento, desperdiçar dinheiro público e privado e abarrotar ainda mais os tribunais e órgãos de controle, enquanto o que se deve buscar é a simplificação do procedimento, a ampliação do universo de competidores e, como conseqüência lógica, a melhor proposta para a Administração.


[1] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Vade-mécum de licitações e contratos: legislação selecionada e organizada com jurisprudência, notas e índices. 3 ed., Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 41.

[2] TJMG. Medida cautelar na ADIn n° 000.323.796-3/00. DOE 11 abr. 2003.

[3] Lei nº 8.666/93. “Art. 118. Os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as entidades da administração indireta deverão adaptar suas normas sobre licitações e contratos ao disposto nesta Lei”.

[4] RIGOLIN, Ivan Barbosa. Habilitação nas Licitações: O horror continua. BLC – Boletim de Licitações e Contratos, jan/2011, p. 10/21.

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