Caso Tinga: a discussão jurídica que leva à impunidade

Em artigo, Henrique Massara analisa a questão aos olhos da lei

No dia 12 de fevereiro do ano corrente, o jogador Tinga, do Cruzeiro, foi alvo de insultos racistas durante a partida contra o Real Garcilaso do Peru, válida pela primeira rodada da fase de grupos da Copa Libertadores da América. Diante da repercussão desse caso no mundo, que ultrapassou a discussão cotidiana do futebol dentro e fora das quatro linhas, torna-se necessário discutir a forma como a legislação brasileira trata o assunto.

Como a situação ocorreu em outro país certamente teríamos que analisar a legislação peruana, porém esse não é o objetivo deste artigo, tendo em vista que a evolução da lei deve ser buscada primeiramente no nosso país. Sendo assim, imaginemos que o lamentável fato tivesse ocorrido no Brasil, como já aconteceu em outras oportunidades.

O art. 3º, IV, da Carta Magna assim determina: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Por esse artigo percebe-se a intenção do legislador constitucional em colocar como objetivo fundamental a não discriminação ou preconceito em razão da raça.

Mais adiante, no art. 5º, XLII, da Lei Maior, foi tipificado o racismo como crime, inafiançável e imprescritível, conforme se vê abaixo:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à prosperidade, nos termos seguintes: XLII – A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.(grifou-se)

Com o intuito de concretizar referidos princípios constitucionais, o legislador criou a Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

“Artigo 20 – Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena – reclusão de um a três anos e multa.”

Posteriormente à lei de racismo houve a introdução da injúria racial no nosso Código Penal com a Lei 9.459/97, com a finalidade de evitar as constantes absolvições que ocorriam das pessoas que ofendiam outras, através de insultos com forte conteúdo racial ou discriminatório, e escapavam da Lei 7.716/89 (discriminação racial) porque não estavam praticando atos de segregação, conforme art. 140, § 3º, do CP, in verbis:

 “Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

§ 3º – Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Pena – reclusão de um a três anos e multa.”

Diante dos dois dispositivos tratarem de preconceito racial, criou-se uma confusão na doutrina e jurisprudência sobre qual o correto enquadramento da conduta no tipo penal. Para elucidar a questão é preciso considerar que o art. 20 da Lei 7.716/89 diz respeito à ofensa a um grupo de pessoas e não somente a um indivíduo, enquanto o art. 140, § 3°, do Código Penal, ao contrário, refere-se a uma pessoa determinada ou grupo determinado, embora valendo-se de instrumentos relacionados a um grupo de pessoas. Não é tarefa fácil diferenciar uma conduta e outra, porém, deve-se buscar, como horizonte, o elemento subjetivo do tipo específico. Se o agente pretender ofender um indivíduo, valendo-se de caracteres raciais, aplica-se o art. 140, § 3°, do Código Penal. No entanto, se o seu real intento for discriminar uma pessoa, embora a ofendendo, para que, de algum modo, fique segregada, o tipo penal aplicável é o do art. 20 da Lei do Racismo.

Além disso, na hipótese de crime de racismo há indeterminação quanto aos sujeitos passivos imediatos, sendo que toda a sociedade acaba sendo lesada pela conduta discriminatória. Ressalta-se, ainda, que o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, e a ação cabível é a penal pública incondicionada, ou seja, independe de representação ao Ministério Público pelo ofendido, tendo em vista a sua gravidade em relação à coletividade.

Pois bem. Em regra, as ofensas de cunho racista proferidas a um indivíduo, que acabam por ofender a sua honra são qualificadas como injúria racial na esfera criminal, o que facilita a vida de quem comete esse tipo de crime por permitir a liberação através de fiança, bem como a prescrição da pena. Porém, a prática de ofensas racistas em um estádio de futebol a um jogador profissional merece uma análise mais acurada. Isso porque o futebol, um dos maiores esportes do mundo, e, sem dúvida, o maior e mais querido esporte do Brasil, é assistido por milhões de pessoas ao redor do mundo e, por isso, atinge uma coletividade imensurável de pessoas.

Ademais, o jogador de futebol representa toda uma nação e inspira a população que representa a lutar por um país melhor, a se superar a cada dia e a persistir até alcançar seus objetivos. Quando praticamente todas as pessoas presentes em um estádio ofendem uma figura pública com enorme influência na população, essa ofensa reflete em toda a coletividade de pessoas do país, especialmente no caso de competições internacionais, como a Libertadores, em que clubes de países diferentes se enfrentam.

E foi isso que presenciamos no nosso país nestes últimos dias através de manifestações públicas da nossa Presidente, bem como dos principais artistas e atletas do país. Importante dizer que raça é o “conjunto de indivíduos cujos caracteres somáticos, tais como a cor da pele, a conformação do crânio e do rosto, o tipo de cabelo etc., são semelhantes e se transmitem por hereditariedade, embora variem de indivíduo para indivíduo” (verbete do Dicionário Aurélio).

Logo, o cenário jurídico perfeito seria se pudéssemos considerar que há crime de racismo quando ofensas são proferidas contra um jogador, que por ser uma figura pública amplia o universo da ofensa, que não atinge apenas a honra da vítima como indivíduo, mas toda a população do país, que no caso de Tinga, alcançou o povo brasileiro composto por uma rica miscigenação de raças.

Porém, a interpretação da doutrina e da jurisprudência exige a presença de um requisito que afasta a prática do crime de racismo em praticamente todos os atos de preconceito racial, que é a segregação. A título de exemplo, a segregação racial ocorre quando uma pessoa é impedida de fazer algo em razão de sua cor ou raça. Sendo assim, esse requisito afasta qualquer possibilidade de enquadramento no crime inafiançável de racismo, desqualificando-o para a injúria racial.

Portanto, a conclusão que se chega é que situações como a de Tinga, caso ocorram em nosso país, deveriam ser exemplarmente punidas e de preferência com crime inafiançável em regime fechado e com a pena imprescritível, mas nossa atual legislação não permite essa interpretação, infelizmente.

De qualquer forma, é importante lembrar que se continuarmos com essa análise sobre atos racistas, situações absurdas como as sofridas pelo Tinga, não só fora do Brasil, mas no nosso país, irão se perpetuar pela eternidade em razão da ausência de punição severa.

Aliás, não é preciso voltar muito no tempo para lembrar que o jogador Tinga foi ofendido por torcedores do Juventude no ano de 2005, que imitaram “sons de macaco” quando ele pegava na bola, e que isso resultou apenas em uma punição para o clube aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), com uma multa de R$ 200 mil e perda de dois mandos de campo. Porém, os verdadeiros criminosos, travestidos de torcedores, nada sofreram, como de costume.

Diante disso, faz-se necessária uma mudança do Código Penal para que crimes que envolvam atos de preconceito racial, mesmo sem segregação, sejam inafiançáveis, imprescritíveis e com a pena cumprida em regime fechado.

Henrique Tunes Massara

Sócio do escritório Cunha Pereira & Massara Advogados Associados

Referências bibliográficas