O que a Lei 14.039/2020 mudou na contratação de serviços de advogado por inexigibilidade de licitação?

Por Gabriel Senra da Cunha Pereira

 

1 Introdução

A discussão sobre a possibilidade da contratação de serviços advocatícios por inexigibilidade de licitação não é nova. Desde o surgimento da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993), muito se debate sobre esse tema. Diversas foram as tentativas de se consolidarem entendimentos, ora favoráveis à maior liberdade de contratação pela Administração Pública, ora pela obrigatoriedade de licitação em quase todos os casos.

Antes da Lei 14.039/2020, não havia qualquer norma legal que tratasse especificamente da contratação dos serviços de advogados pela Administração Pública. Toda a regulamentação da matéria decorria de entendimentos jurisprudenciais e doutrinários.

Para preencher esse “vácuo” legal, foi editada a Lei n. 14.039, de 17 de agosto de 2020, que altera a Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto Jurídico da Advocacia e da OAB).

Assim, pergunta-se: a Lei n. 14.039/2020 alterou os requisitos para a contratação de escritórios de advocacia ou de advogados por inexigibilidade de licitação? Se sim, quais são os novos requisitos?

Para responder a essas perguntas, far-se-á uma breve análise das inovações da referida Lei, e, em seguida, rápido estudo do entendimento jurisprudencial brasileiro sobre o tema.

2 A inovação trazida pela Lei n. 14.039/2020

A nova lei inclui o art. 3º-A no Estatuto da Advocacia, cujo caput prevê que “Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei”.

O objetivo da nova Lei é, à evidência, classificar os serviços de advocacia como singulares a priori, independentemente do caso concreto.

Desse modo, busca-se inserir indiretamente os serviços de advocacia no rol dos “serviços técnicos profissionais especializados” previstos no art. 13, da Lei n. 8.666/1993[1], cuja contratação em tese, pode ser feita por “inexigibilidade de licitação”, nos termos do art. 25, inc. II, da mesma lei[2].

Além disso, a recém criada legislação estabelece o parágrafo único, que repete quase que na integralidade um dispositivo já existente na Lei 8.666/1993: § 1º, do art. 25. Compare-se:

Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

§ 1º. Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

Da leitura desses dispositivos se percebe, então, que a Lei n. 14.039/2020 define a advocacia como atividade técnica e singular por sua natureza, bem como estabelece o conceito legal (já existente) de notória especialização.

Passe-se, agora, à análise do tratamento jurisprudencial da matéria.

3 O entendimento jurisprudencial

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem posição consolidada no sentido de que a contratação por inexigibilidade de escritório de advocacia só pode acontecer “quando for o caso de serviço de natureza singular a ser realizado por profissional com notória especialização(EREsp 1.192.186/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. p/ Acórdão Min. Og Fernandes, 1ª Seção, j. 26.6.2019, DJe 1º.8.2019).

Por serviço de natureza singular, o STJ entende se tratar daquela situação excepcional, que não pode ser enfrentada por qualquer profissional, mesmo se especializado na área. Acontece quando o caso é altamente complexo e incomum (AREsp 1507099/GO, Rel. Min. Francisco Falcão, 2ª T, j. 17.12.2019, DJe 19.12.2019).

Já o profissional notoriamente especializado, para o mesmo Tribunal, é aquele detentor de elevado grau de reconhecimento, que dispensa apresentações, cuja carreira é profunda e largamente dedicada a um tema. Esse profissional comumente possui em seu currículo publicações de alta relevância e o exercício do magistério em instituições nacionais e internacionais de prestígio. Todos esses elementos devem demonstrar que aquele indivíduo é o único capaz de executar a tarefa de que a Administração Pública necessita (REsp 448.442/MS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 24/9/2010).

Nesse mesmo sentido é a jurisprudência consolidada do Tribunal de Contas da União (TCU):

A contratação direta de serviço de advocacia, por inexigibilidade de licitação, com suporte no permissivo contido no art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993, demanda não só a demonstração da notória especialização do profissional ou escritório escolhido, mas também a comprovação da singularidade do objeto da avença, caracterizada pela natureza ‘excepcional, incomum à praxe jurídica’ do respectivo serviço. (TCU, Acórdão 3924/2012-Segunda Câmara, Rel. Min. José Jorge, j. 5.6.2012

Assim, são dois os requisitos apontados pela firme jurisprudência brasileira para a contratação de escritórios de advocacia por inexigibilidade de licitação: (i) notória especialização do profissional; e (ii) singularidade dos serviços a serem contratados.

Lançadas essas premissas, a conclusão torna-se clara.

4 Conclusão

Como se nota, a Lei n. 14.039/2020 manteve intocados a necessidade e o conceito de notória especialização do advogado ou sociedade de advogados para a sua contratação por inexigibilidade.

Contudo, estabeleceu que os serviços advocatícios são, por natureza e, portanto, a priori e em qualquer caso, singulares.

Com isso, segundo o novo texto legal, para a contratação de serviços de advocacia basta a comprovação da notória especialização, presumindo-se singular o objeto do contrato, independentemente de sua complexidade.

Agora resta saber como os Tribunais brasileiros vão se posicionar em relação a esse “afrouxamento” da regra. Mas, na opinião deste autor, a definição apriorística dos serviços advocatícios como singulares, para fins de contratação por inexigibilidade de licitação, afronta o art. 37, inc. XXI, primeira parte, da Constituição da República de 1988. É inconstitucional.

[1] Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a: […]

[2] Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;