A Ordem dos Advogados do Brasil e os interesses metaindividuais
A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB é uma autarquia federal de regime especial, regulada pela Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994, o Estatuto da Advocacia e da OAB, que prevê, em seu art. 44, o seguinte:
Art. 44. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade:
I – defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;
II – promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.
§ 1º A OAB não mantém com órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico.
Como se nota, a OAB presta serviço público e tem a finalidade de defender a Constituição, a ordem jurídica estabelecida, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e pela melhoria da cultura e das instituições jurídicas. Tem finalidade, ainda, de promover a representação e a defesa dos advogados no Brasil.
Pelo que se pode concluir, em rápida análise, é que a Ordem dos Advogados do Brasil tem legitimidade para a defesa de interesses metaindividuais, ou seja, que não públicos, restritos ao Estado, nem individuais, da esfera privada (LENZA, 2008, p. 61). Todavia, a questão a ser tratada neste trabalho reside na sua legitimidade para tal defesa e o âmbito de sua atuação.
Os interesses metaindividuais podem ser difusos ou coletivos, sendo que ambos têm em comum as características de transindividualidade e natureza indivisível. Diferenciam-se quanto à titularidade dos direitos. Os titulares do interesse difuso são pessoas indeterminadas e ligadas por matéria de fato, ao passo que são titulares de interesse coletivo pessoas determinadas ou determináveis, interligadas por alguma relação jurídica.
No art. 44, inc. II, do Estatuto da Advocacia, é literal a expressão “promover, com exclusividade, a representação, a defesa (…) dos advogados”. No mesmo sentido, o art. 54, inc. II, da Lei 8.906/94 assim dispõe:
Art. 54. Compete ao Conselho Federal:
II – representar, em juízo ou fora dele, os interesses coletivos ou individuais dos advogados;
Logo, pouco se pode discordar quanto à legitimidade da OAB para defesa dos interesses coletivos dos advogados brasileiros.
Já quanto aos interesses difusos e coletivos em que não há o interesse específico da classe de advogados, reside uma controvérsia ainda não totalmente solucionada, havendo entendimentos no sentido de que a OAB somente teria legitimidade para defender direitos coletivos da categoria de advogados, e outros no sentido de que a entidade de classe teria legitimidade para a defesa também de interesses difusos.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança Coletivo nº 93.01.18624-1 / DF impetrado pela Ordem dos Advogados do Brasil, julgou-a carecedora de ação nos termos da seguinte ementa:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. LEGITIMIDADE PARA REQUERER MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL SÓ TEM LEGITIMIDADE PARA REQUERER MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO QUANDO DEFENDE DIREITOS DE TODA A CATEGORIA DOS ADVOGADOS, AGINDO COMO SUBSTITUTO PROCESSUAL DESTES. NA HIPOTESE, O INTERESSE DOS SUBSTITUÍDOS (ADVOGADOS) HÁ QUE ESTAR DE ALGUMA FORMA CONECTADO COM O DO SUBSTITUTO (OAB). ILEGITIMIDADE ATIVA RECONHECIDA. CARÊNCIA DA AÇÃO DECRETADA. PROCESSO EXTINTO, SEM JULGAMENTO DO MERITO (ART. 267, VI, CPC).
Como se vê, foi extinto, sem julgamento de mérito, o processo interposto pela OAB que questionava a legalidade de um concurso público para juiz federal substituto, em razão de ela, supostamente, não ter legitimidade para impetrar aquela ação em defesa de interesses coletivos que não lhe seriam afetos.
A Lei nº 11.448, de 15 de janeiro de 2007, alterou o art. 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1995 (Lei da Ação Civil Pública), que dispõe sobre quem tem a legitimidade para propor as ações principal e cautelar civis públicas. O dispositivo legal acima ficou com a seguinte redação:
Art. 5º. Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
I – o Ministério Público;
II – a Defensoria Pública;
III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;
V – a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
No inciso IV acima, confere-se legitimidade às autarquias para a propositura da ação civil pública, dentre as quais se incluiria a Ordem dos Advogados do Brasil. Todavia, ainda no ano de 2005, quando a Lei nº 11.448/07 ainda era o Projeto de Lei nº 5.794/05, pretendeu-se conceder expressamente a legitimidade ativa da ação civil pública à OAB, todavia, o relator, Dep. Luiz Antônio Fleury, retirou do projeto tal prerrogativa, sob a seguinte fundamentação:
Não se vê razões de ordem institucional ou jurídica que possam fundamentar a inclusão no mencionado rol do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, dos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, das Mesas das Assembléias Legislativas dos Estados e da Câmara Legislativa do Distrito Federal, dos Prefeitos, das Mesas das Câmaras Municipais e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e suas Seccionais. Pelo contrário, tal medida legislativa pode tornar o instrumento processual da ação civil pública bastante vulnerável a utilizações em que prepondere o caráter político-partidário em detrimento da verdadeira defesa de interesses e direitos coletivos e difusos da sociedade[1]
Por outro lado, o art. 54, inc. XIV, da Lei 8.906/94, prevê o seguinte:
Art. 54. Compete ao Conselho Federal:
(…)
XIV – ajuizar ação direta de inconstitucionalidade de normas legais e atos normativos, ação civil pública, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e demais ações cuja legitimação lhe seja outorgada por lei;
Mas, a controvérsia haveria de permanecer, tendo-se em vista que a lei posterior revoga a lei anterior e a lei especial prevalece sobre a lei genérica. Assim, em tese, a Lei das Ações Civis Públicas, por se especial e mais recente, teria retirado da Ordem dos Advogados do Brasil a competência para a propositura da ação civil pública.
Dessa forma, não se tendo incluído a Ordem dos Advogados do Brasil no rol do art. 5º da Lei das Ações Civis Públicas, a dúvida quanto à sua legitimidade permaneceu.
O Superior Tribunal de Justiça, no voto vencido do Relator, Ministro Francisco Salomão, no conflito de competência nº 45.410 / SC, em ação civil pública cautelar proposta pela OAB/SC contra o aumento das tarifas de transporte público do Município de Florianópolis, manifestou entendimento no sentido de que a seccional catarinense não teria legitimidade para ajuizá-la, conforme trecho de seu voto:
A Ordem dos Advogados do Brasil é considerada autarquia sui generis , não possuindo qualquer vínculo funcional ou hierárquico com a Administração Pública, não se caracterizando, ipso facto, como órgão da administração, nem detendo personalidade jurídica de direito público.
Em que pese à previsão do art. 109, inciso I, da CF/88, para que a Justiça Federal seja competente para processar e julgar causa em que presente autarquia como parte, necessário averiguar-se se dentre as funções institucionais da OAB encontram-se aquelas as quais defende em ação por ela postulada.
Com efeito, o art. 44 da Lei nº 8.906/94 assim determina, litteris:
‘Art. 44. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade:
I – defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;
II – promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.’
Verifica-se, de forma clarividente, que não faz parte das atribuições da OAB a defesa dos interesses de cidadãos com relação ao aumento de tarifa de transporte público municipal, como é o caso do objeto da ação cautelar e da posterior ação civil pública por aquela autarquia ajuizada perante o Juízo Federal da Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina.
Vinculou-se, pois, no voto acima transcrito, a legitimidade da OAB para o ajuizamento de ações civis públicas às suas atividades fins. Ou seja, se a defesa que se pretende fazer não está inserida nos incisos I e II do art. 44 do Estatuto, a Ordem não teria legitimidade para defender interesses difusos ou coletivos.
Por outro lado, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no processo nº 2009.04.00.009299-2, julgou pela legitimidade ativa da Ordem dos Advogados do Brasil para interpor ação civil pública em defesa de interesses difusos. A ementa tem o seguinte trecho:
DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. DIREITO AMBIENTAL. DIREITO MUNICIPAL. DIREITO URBANÍSTICO. DIREITO PROCESSUAL. LEI COMPLEMENTAR MUNICIPAL. ZONEAMENTO URBANO. CONFLITO COM LEI ORGÂNICA. CONTROLE DE LEGALIDADE, NÃO DE CONSTITUCIONALIDADE. DEVER FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL, POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO E DESENVOLVIMENTO LEGISLATIVO DO ESTATUTO DAS CIDADES E DA LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS. CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. INOBSERVÂNCIA DE NECESSIDADE DE ESTUDO AMBIENTAL. LICENÇA PARA CONSTRUIR INSUBSISTENTE. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. PRINCÍPIOS DA OBRIGATORIEDADE, DA INDISPONIBILIDADE E DO FORMALISMO NO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. ADOÇÃO DE MEDIDAS REPARATÓRIAS, COMPENSATÓRIAS E INDENIZATÓRIAS. LEGITIMIDADE ATIVA DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL SANTA CATARINA. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA.
1. A entidade da advocacia é legítima para o aforamento desta ação civil pública, nos termos do artigo 44 da Lei nº 8.906/1944, que estabelece entre suas finalidades precípuas a defesa da Constituição e da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, hipóteses em que se amolda a alegação de edição de lei municipal com vício de inconstitucionalidade por ofender os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa. Ademais, o empreendimento cuja paralisação se requer afetará de modo direto as condições de habitabilidade do prédio da Seccional da OAB, donde também exsurge seu interesse e legitimidade.
2. Houve deliberação do Conselho Pleno da OAB/SC a respeito da propositura da ação civil pública, não restando dúvidas quanto à origem da iniciativa judicial por parte da Seccional catarinense da OAB; quem comparece no pólo ativo é a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de Santa Catarina, atendendo, assim, ao parágrafo 2º do artigo 45 do EOAB. Adotar a interpretação defendida nas contrarrazões seria dizer que a Seccional da OAB/SC não compreende o Conselho Seccional da OAB em Santa Catarina, afastando-se completamente da lógica e da sistemática estabelecida no EOAB, como demonstra a leitura conjunta dos artigos 44 a 59.
No caso acima, entendeu-se que a matéria objeto da ação civil pública tinha pertinência com um dos fins da Ordem dos Advogados do Brasil, qual seja, a defesa da Constituição e da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, hipóteses às quais se amoldariam a alegação de inconstitucionalidade de lei municipal.
O próprio Tribunal Regional da 1ª Região, que já se demonstrou anteriormente ter julgado pela ilegitimidade da OAB, proferiu julgamento em sentido contrário no processo nº 2004.39.305-3/PA, cuja ementa é a seguinte:
“A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB ostenta legitimidade para ajuizar ação civil pública destinada à defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores (art. 5º da Lei 7.347/85 c/c art. 44, I, da Lei 8.906/94 c/c art. 170, V, da Constituição). Precedente.”
No caso acima, então, entendeu-se que, independentemente da pertinência expressa entre a matéria objeto da ação e a finalidade expressa no Estatuto da OAB, teria esta entidade a legitimidade ad causam para a defesa de interesses difusos e coletivos indiscriminadamente.
Não se pode deslembrar, também, que o art. 103, inc. VII, da Constituição da República de 1988, confere ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade, que, indubitavelmente, configura a defesa de interesses difusos.
O doutrinador NETTO LÔBO (1996, p. 203), diz o seguinte:
“A ação civil pública é um avançado instrumento processual introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 (com as alterações promovidas pelo Código de Defesa do Consumidor), para a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (por exemplo, meio ambiente, consumidor, patrimônio turístico, histórico, artístico). Os autores legitimados são sempre entres ou entidades, públicos ou privados, inclusive associação civil existente há mais de um ano e que inclua entre suas finalidades a defesa desses interesses. O elenco de legitimados foi acrescido da OAB, que poderá ingressar com a ação não apenas em prol os interesses coletivos de seus inscritos, mas também para tutela dos interesses difusos, que não se identificam em classes ou grupos de pessoas vinculadas por uma relação jurídica básica. Sendo de caráter legal a legitimidade coletiva da OAB, não há necessidade de comprovar pertinência temática com suas finalidades, quando ingressa em juízo.
Portanto, segundo se extrai do entendimento acima, a Ordem dos Advogados do Brasil tem legitimidade para ingressar com ações de defesa de interesse coletivo dos advogados e, além disso, de interesse coletivo de outras classes e grupos, bem como de interesses difusos, não havendo qualquer necessidade de haver pertinência entre a matéria objeto da ação e as finalidades previstas no Estatuto da OAB.
Concordamos com esta última tese, de que a Ordem dos Advogados do Brasil tem legitimidade para ajuizar toda e qualquer ação de defesa dos interesses coletivos, sejam eles afetos à classe dos advogados ou não, bem como ação de defesa dos interesses difusos, pois qualquer violação a tais direitos representa, em última análise, violação à Constituição, à ordem jurídica do Estado democrático de direito, aos direitos humanos, a justiça social, devendo e podendo a OAB pugnar pela boa aplicação das leis e pelo aperfeiçoamento das instituições jurídicas.
Retirar-se da Ordem dos Advogados do Brasil a legitimidade ou limitar-se o âmbito e alcance da defesa dos interesses coletivos e difusos representa sério risco à ordem jurídica constitucional e legal brasileira.
[1] Encontrado em: <http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_legitimidade_dorini.pdf> Acesso em 18.05.2010.