A cultura da impunidade administrativa e a perpetuação dos maus contratados

Por Barbara Gomide


No âmbito administrativo, sobretudo em municípios de pequeno porte, não é incomum o relato de que não se instauram processos punitivos contra empresas que descumprem cláusulas de contratos administrativos. As justificativas são variadas e vão desde o desconhecimento dos trâmites legais até a imaturidade de não acreditar em seus efeitos práticos.

Em que pese a desídia do poder público em promover a responsabilização, é certo que a aplicação efetiva de sanções pode alterar o cenário de inadimplência contratual a longo prazo. Em contrapartida, a cultura de não punir acaba por perpetuar um ciclo de descumprimentos, alimentado pela certeza da impunidade e pela má-fé de fornecedores que se aproveitam dessa omissão.

A Lei nº 14.133/2021, em seu artigo 155, consagra o poder-dever da Administração de responsabilizar o contratado por infrações cometidas na execução contratual. Já o artigo 156 elenca as sanções aplicáveis, distribuídas de forma proporcional: advertência, multa, impedimento de licitar e contratar, e declaração de inidoneidade. Não se trata, portanto, de mera faculdade, mas de obrigação jurídica voltada à preservação do interesse público e da credibilidade das contratações.           

É importante reconhecer que, na prática, muitos municípios de menor porte enfrentam dificuldades para estruturar comissões de processo sancionador. Além da escassez de servidores disponíveis, recai sobre aqueles designados o temor de retaliações políticas ou pessoais por parte de fornecedores locais, muitas vezes influentes nas comunidades pequenas.

Outro fator recorrente é a sobrecarga de trabalho: os mesmos servidores que deveriam compor as comissões punitivas já acumulam funções em licitações, contratos e setores administrativos diversos. Esse acúmulo leva gestores a evitarem instaurar processos sancionadores, preferindo “acomodar” o problema para não gerar mais demandas.

O resultado é uma paralisia administrativa que reforça a cultura da impunidade: os maus fornecedores permanecem no mercado, enquanto os bons se desestimulam diante da falta de isonomia.

Para afastar esse ciclo, é necessário desmistificar a responsabilização e tratá-la como um instrumento de gestão, com procedimentos claros e objetivos. O processo sancionador deve respeitar as garantias constitucionais, mas não precisa ser complexo a ponto de inviabilizar sua execução. Em linhas gerais, o fluxo prático pode ser descrito assim:

  1. Relatório do fiscal do contrato – apontamento formal das irregularidades verificadas na execução.
  2. Decisão do gestor – análise do relatório e decisão motivada de instaurar o processo punitivo.
  3. Nomeação da comissão – designação formal de servidores responsáveis pela condução do processo.
  4. Instauração e intimação – Abertura oficial do processo e notificação do contratado para apresentar defesa prévia.
  5. Análise da defesa prévia – a comissão avalia os argumentos e elabora relatório conclusivo, sugerindo ou não a penalidade cabível.
  6. Prazo para recurso administrativo – assegura-se ao fornecedor o direito de recorrer da decisão.
  7. Decisão final pela autoridade competente – aplicação definitiva da penalidade, devidamente motivada.
  8. Inscrição nos cadastros oficiais – registro da sanção nos órgãos competentes (CNEP, CEIS, etc.), garantindo que fornecedores problemáticos sejam afastados do mercado.

Embora simples, estes passos podem auxiliar a Administração na observância do contraditório e da ampla defesa, ao mesmo tempo em que protege o interesse público da inércia.

Importa destacar que a responsabilização do contratado não deve ser encarada de forma exclusivamente punitivista. Isso não significa que todo fornecedor deva ser necessariamente sancionado. A sanção deve ser compreendida como instrumento de gestão e de incentivo a boas práticas, voltado à correta execução do contrato, à proteção do interesse público e à valorização dos fornecedores que cumprem suas obrigações com seriedade. A finalidade não é punir por punir, mas criar um ambiente de confiança e equilíbrio, em que o cumprimento contratual seja a regra, e não a exceção.

Nesse contexto, cabe à Administração exercer um juízo de proporcionalidade na definição da sanção aplicável, aplicando-a conforme a gravidade da infração e as circunstâncias do caso concreto. As justificativas apresentadas pelo fornecedor podem revelar situações legítimas, capazes de afastar ou atenuar a penalidade. Por isso, a análise criteriosa das razões de defesa é fundamental para evitar punições desnecessárias e desproporcionais, reforçando e garantindo que a responsabilização cumpra sua função de forma justa e equilibrada.

Ao aplicar sanções de forma proporcional, fundamentada e com respeito ao devido processo legal, a Administração não apenas cumpre a lei, mas também exerce um papel pedagógico perante o mercado. A responsabilização efetiva faz com que os fornecedores percebam que o descumprimento contratual traz consequências reais, induzindo-os a agir com maior diligência e profissionalismo.

Por outro lado, a omissão administrativa em instaurar processos punitivos gera efeitos perversos: cria-se um ambiente de impunidade que desestimula os bons fornecedores — aqueles que cumprem integralmente suas obrigações — e fortalece os maus contratados, que veem vantagem em descumprir.

A mudança do hábito, necessariamente, passa por uma atuação mais firme e técnica dos gestores públicos. É preciso entender que punir não é perseguição, mas sim ato de justiça contratual e de proteção ao erário, assegurando isonomia entre fornecedores e eficiência na aplicação dos recursos públicos. Somente com o fortalecimento da cultura sancionatória, mesmo diante das dificuldades estruturais, será possível romper o ciclo da impunidade nas contratações públicas.