Por Fernando Landim da Cunha Pereira
Quando falamos em contratos, a cláusula penal é um dos instrumentos mais relevantes para o bom funcionamento da relação contratual. Ela exerce duas funções centrais: liquidar antecipadamente as perdas e danos, e, mais importante ainda, garantir o cumprimento da obrigação assumida pelas partes, conferindo maior segurança ao vínculo estabelecido.
Isso porque, na prática, ninguém pode ser forçado fisicamente a cumprir uma obrigação. Ou seja, não há um meio coercitivo direto que obrigue a execução de uma prestação. O que se faz, então, é utilizar a coação jurídica — no bom sentido da palavra — por meio da previsão de penalidades pelo descumprimento contratual. Trata-se de um incentivo negativo, ou um desestímulo ao inadimplemento, e essa técnica está presente não apenas nos contratos, mas também na legislação e nas decisões judiciais em geral.
Todavia, o que se observa com frequência no contexto brasileiro é a atuação do Poder Judiciário que, com um certo intervencionismo característico, altera ou reduz unilateralmente as condições pactuadas entre as partes — inclusive no tocante à cláusula penal.
É verdade que o art. 413 do Código Civil autoriza o juiz a reduzir a penalidade em duas hipóteses: (i) quando a obrigação tiver sido cumprida em parte; ou (ii) quando o valor da penalidade for manifestamente excessivo. No entanto, o problema está justamente na subjetividade contida na expressão “manifestamente excessivo”, o que abre margem para interpretações amplas e, muitas vezes, arbitrárias.
Aqui, permito-me externar uma opinião pessoal: parece-me que subestimamos a capacidade das pessoas, tratando-as como se fossem permanentemente vulneráveis, incapazes de compreender e negociar cláusulas contratuais. Isso revela uma visão paternalista segundo a qual o Estado deve sempre intervir para “proteger” o cidadão de suas próprias decisões — o que, evidentemente, não corresponde à realidade de grande parte das relações contratuais no país.
Ora, quem celebra um contrato escrito tem a oportunidade de ler, compreender e discutir as cláusulas, inclusive a cláusula penal. Pode-se negociar seus termos, sugerir alterações ou, simplesmente, recusar a assinatura do contrato caso entenda que determinada cláusula é prejudicial. Acreditar que o Poder Judiciário sabe melhor do que as próprias partes o que é excessivo ou não beira a arrogância institucional.
É importante destacar que não me refiro aqui aos contratos de adesão, nos quais a parte hipossuficiente não tem real margem de negociação — sua única opção, nesses casos, é aceitar ou rejeitar o contrato como um todo. Refiro-me, sim, aos negócios jurídicos bilaterais e paritários, nos quais ambas as partes, em condições de igualdade, manifestaram livremente sua vontade ao concordar com todas as cláusulas, inclusive a penal.
Nesse sentido, questiono até mesmo a necessidade do art. 413 do Código Civil, já que o art. 412 já impõe uma limitação objetiva à cláusula penal, ao dispor que “o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal”. Ou seja, caso a penalidade estipulada ultrapasse o valor da obrigação, já há um mecanismo legal de contenção, o que torna redundante a autorização para redução por simples critério de “excessividade”, sem maiores balizas normativas.
O que se vê, na prática, é o uso recorrente do art. 413 como um instrumento de reequilíbrio contratual promovido de ofício pelo Judiciário, mesmo quando não há pedido das partes, nem demonstração de abuso ou desproporção gritante. Tal conduta representa, em minha visão, uma indevida intromissão nas relações privadas, que compromete a autonomia da vontade, desestimula o cumprimento voluntário das obrigações e gera insegurança jurídica.
Aqui eu trago para análise o precedente do STJ, REsp 1447247/SP.
No precedente mencionado, se discutia o descumprimento de um contrato entre duas empresas de grande porte, que celebraram negócio jurídico milionário de compra e venda de uma quantidade significativa de árvores.
Na ocasião, se havia reconhecido o direito da parte inocente ao recebimento da cláusula penal, mas TJSP reduziu de ofício a multa para 10% da obrigação principal, o que foi mantido pelo C. STJ. Veja-se a ementa do acórdão paradigma:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO POSTULANDO O CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO AUTORAL COM CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DA CLÁUSULA PENAL AVENÇADA. REDUÇÃO DE OFÍCIO DA MULTA CONTRATUAL PELA CORTE ESTADUAL . 1. Em que pese ser a cláusula penal elemento oriundo de convenção entre os contratantes, sua fixação não fica ao total e ilimitado alvedrio destes, porquanto o atual Código Civil, diferentemente do diploma revogado, introduziu normas de ordem pública, imperativas e cogentes, que possuem o escopo de preservar o equilíbrio econômico financeiro da avença, afastando o excesso configurador de enriquecimento sem causa de qualquer uma das partes. 2. Entre tais normas, destaca-se o disposto no artigo 413 do Código Civil de 2002, segundo o qual a cláusula penal deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio . 3. Sob a égide do Código Civil de 2002, a redução da cláusula penal pelo magistrado deixou, portanto, de traduzir uma faculdade restrita às hipóteses de cumprimento parcial da obrigação (artigo 924 do Código Civil de 1916) e passou a consubstanciar um poder/dever de coibir os excessos e os abusos que venham a colocar o devedor em situação de inferioridade desarrazoada. 4. Superou-se, assim, o princípio da imutabilidade absoluta da pena estabelecida livremente entre as partes, que, à luz do código revogado, somente era mitigado em caso de inexecução parcial da obrigação . 5. O controle judicial da cláusula penal abusiva exsurgiu, portanto, como norma de ordem pública, objetivando a concretização do princípio da equidade – mediante a preservação da equivalência material do pacto – e a imposição do paradigma da eticidade aos negócios jurídicos. 6. Nessa perspectiva, uma vez constatado o caráter manifestamente excessivo da pena contratada, deverá o magistrado, independentemente de requerimento do devedor, proceder à sua redução, a fim de fazer o ajuste necessário para que se alcance um montante razoável, o qual, malgrado seu conteúdo sancionatório, não poderá resultar em vedado enriquecimento sem causa . 7. Por sua vez, na hipótese de cumprimento parcial da obrigação, deverá o juiz, de ofício e à luz do princípio da equidade, verificar se o caso reclamará ou não a redução da cláusula penal fixada. 8. Assim, figurando a redução da cláusula penal como norma de ordem pública, cognoscível de ofício pelo magistrado, ante sua relevância social decorrente dos escopos de preservação do equilíbrio material dos contratos e de repressão ao enriquecimento sem causa, não há falar em inobservância ao princípio da adstrição (o chamado vício de julgamento extra petita), em preclusão consumativa ou em desrespeito aos limites devolutivos da apelação . 9. Recurso especial não provido.” (STJ – REsp: 1447247 SP 2013/0099452-0, Relator.: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 19/04/2018, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/06/2018)
O fato de nem mesmo a parte contratante ter se insurgido contra o valor da cláusula penal é um indicativo evidente do excesso de intervencionismo estatal nas relações privadas.
Afinal, se nem aquele que arcaria com a multa contratual a considerou abusiva ou excessiva, por que razão julgadores — que não participaram da negociação, não conhecem o contexto e não assumem os riscos do negócio — sentem-se no direito de modificar os termos acordados? Se o valor da penalidade envolve recursos privados e decorre de um pacto livremente firmado, por que o Estado deve intervir em nome de um “interesse” que o próprio interessado não reclamou?
Nesse ponto, é relevante destacar a importância da estabilidade dos contratos para a segurança jurídica. Esta, sim, é uma matéria de ordem pública, e deveria prevalecer sobre uma pretensa proteção ao patrimônio de quem expressamente aceitou o risco contratual e não questionou o custo da cláusula penal.
Como já mencionado, ao celebrar um contrato, as partes estipulam a cláusula penal como mecanismo de coerção legítima ao cumprimento das obrigações. Caso soubessem, desde o início, que o Estado poderia reduzir ou anular essa penalidade ao seu bel-prazer, com base em critérios subjetivos e casuísticos, é possível que sequer houvesse interesse na contratação. A previsibilidade e a confiança são elementos essenciais nas relações privadas, especialmente nas de natureza negocial.
Evidentemente, não se descarta a possibilidade de revisão judicial em situações absolutamente excepcionais, nas quais haja clara violação da boa-fé, vício de consentimento ou manifesta desproporcionalidade com respaldo probatório.
Um exemplo ilustrativo é o caso amplamente divulgado do influenciador digital Luva de Pedreiro, que celebrou contrato com seu ex-empresário, prevendo uma cláusula penal de valor milionário, sem saber ler, sem ter acesso a assessoramento jurídico e sem qualquer condição financeira de suportar a obrigação. Trata-se de um cenário que reúne os requisitos para o reconhecimento de nulidades contratuais e intervenção judicial fundada na proteção da parte vulnerável e na ausência de real autonomia de vontade.
Minha crítica, portanto, não recai sobre a existência da possibilidade de intervenção judicial, que é legítima em casos extremos, mas sim sobre o uso recorrente e banalizado desse poder, que o Poder Judiciário tem exercido de forma corriqueira, muitas vezes sem provocação das partes e sem violação manifesta dos preceitos legais.
A preservação da autonomia privada e da força obrigatória do contrato exige que sejam respeitadas as vontades expressamente manifestadas pelas partes, inclusive no que se refere às cláusulas penais. Estas constituem instrumento essencial à segurança jurídica, pilar que sustenta a liberdade contratual e o próprio funcionamento saudável das relações econômicas.