Impactos do Coronavírus nas Licitações e Contratos Administrativos

* Por Gabriel Senra da Cunha Pereira e Gregory de Lima Barbosa

1 INTRODUÇÃO

A pandemia causada pela disseminação do novo coronavírus fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarasse que o surto constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII)[1].

Quase que imediatamente, o Ministério da Saúde do Brasil expediu a Portaria n. 188, de 3 de fevereiro de 2020, em que declarou a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN)[2].

Em seguida, editou-se a Lei Federal n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre o enfrentamento da emergência em saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus[3].

E, no dia 20 de março de 2020, o Congresso Nacional reconheceu, pelo Decreto Legislativo n. 6/2020, a ocorrência de estado de calamidade pública, por solicitação do Chefe do Poder Executivo[4].

Todo esse esforço normativo gerou repercussões importantes na regulamentação atinente às licitações públicas e contratos administrativos executados no período da pandemia.

Abordam-se, primeiro, as repercussões no âmbito das licitações.

 

2 REPERCUSSÕES NAS LICITAÇÕES

A mais importante norma que impacta nas licitações foi a Lei n. 13.979/2020, especialmente o disposto nos arts. 4º a 4º-I, com alterações dadas pela Medida Provisória n. 926/2020.

Na prática, são dez artigos, mais diversos parágrafos, incisos e alíneas que tratam do tema em questão.

Inicialmente, destaca-se o caput do art. 4º, da Lei n. 13.979/2020, que autoriza a dispensa de licitação para a aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da crise, enquanto durar a declaração da ESPIN, instituída pela Portaria 188/2020 do Ministério da Saúde.

Observe-se que não é qualquer aquisição que poderá ser dispensada nesse período, mas apenas aquelas destinadas ao enfrentamento da pandemia, e apenas enquanto durar a ESPII declarada pela OMS.

É curioso notar que a legislação específica pouco inova no ordenamento jurídico, uma vez que o disposto no art. 24, inc. IV, já era suficiente à dispensa da licitação por calamidade pública.

Duas diferenças, sutis, são as seguintes. A primeira é quanto ao art. 4º da Lei 13.979/2020, que dispensa as licitações enquanto durar a ESPII, declarada pela OMS e ratificada pelo Ministério da Saúde, ao passo que o art. 24, IV, da Lei 8.666/19993 tem aplica-se aos casos de emergência e calamidade pública, declarados pelo parlamento brasileiro. A segunda é quanto à ausência de previsão, na Lei 13.979/2020, de dispensa de licitação para obras, mas apenas para serviços de engenharia. A hipótese de dispensa para obras de engenharia segue prevista no art. 24, inc. IV, da Lei 8.666/93.

De toda forma, uma vez que as duas declarações (ESPII e calamidade pública) estão vigentes, qualquer dos dois dispositivos pode embasar eventuais aquisições por dispensa de licitação.

As contratações realizadas com base na Lei 13.979/2020 deverão ser imediatamente publicadas em site oficial do órgão licitante, contendo, no mínimo, o nome e CPF ou CNPJ do contratado, o prazo do contrato, o valor e o processo de contratação.

A Lei recente também flexibilizou algumas regras visando a facilitar a contratação de empresas que, sob a regra geral, não poderiam vender à Administração Pública.

O § 3º do art. 4º estabelece que, em caráter excepcional e desde que sejam as únicas fornecedoras do bem ou serviço desejado pela Administração Pública, poderão ser contratadas empresas declaradas inidôneas, nos termos do art. 87, inc. IV, da Lei 8.666/93, e suspensas do direito de licitar e impedidas de contratar com a Administração, nos termos do art. 87, inc. III, da Lei Geral de Licitações.

O mencionado § 3º omitiu-se quanto à penalidade do art. 7º, da Lei Federal n. 10.520/2002, a Lei do Pregão, que não se confunde com aquelas dispostas na Lei Geral de Licitações. Entretanto, a interpretação sistemática e atenta às finalidades da Lei n. 13.979/2020 leva à única conclusão possível, no sentido de que também poderão ser contratadas, nas mesmas condições, as empresas punidas com base no art. 7º da Lei do Pregão. O mesmo se aplica às empresas punidas com base na Lei de Improbidade Administrativa e na Lei Anticorrupção.

Outra flexibilização prevista na Lei 13.979/2020 é quanto à possibilidade de aquisição de equipamentos usados, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento do bem adquirido.

Quando a aquisição for de bens e serviços comuns, o art. 4º-E, § 1º, da Lei 13.979/2020, dispensa a elaboração de estudos preliminares e admite a apresentação de termo de referência ou projeto básico simplificados, em que bastam a declaração do objeto, a fundamentação simplificada da contratação, a descrição resumida da solução apresentada, os requisitos da contratação, critérios de medição e pagamento e as estimativas de preços. Tais exigências são bem mais simples que aquelas previstas na Lei do Pregão, n. 10.520/2002, no do Decreto Federal 3.555/2000 e no Decreto Federal n. 10.024/2019.

Excepcionalmente, poderá até mesmo ser dispensada a estimativa de preços, desde que devidamente justificada pela autoridade competente. Também, poderá ser realizada a contratação por preços superiores aos obtidos na pesquisa, se tais valores decorrerem de oscilações supervenientes e for justificada nos autos do processo licitatório.

Outra relevante flexibilização trazida pela Lei 13.979/2020 é quanto à possibilidade de a autoridade competente dispensar a apresentação de documentação relativa à habilitação, inclusive regularidade fiscal e trabalhista.

Não podem ser dispensados os documentos de regularidade junto à Seguridade Social, nem a declaração de que a empresa não emprega menores de quatorze anos, menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, e menores de dezoito anos em trabalho noturno, perigoso ou insalubre.

Importante alteração trazida pela Lei 13.979/2020 refere-se à redução, pela metade, dos prazos dos procedimentos do pregão presencial e eletrônico. Com isso, o prazo entre a publicação do edital e a apresentação das propostas poderá ser reduzido de oito para quatro dias úteis, e o prazo para apresentação de razões e contrarrazões de recursos poderá ser reduzido de três para um dia, sem efeito suspensivo.

Os contratos celebrados em decorrência da ESPII, ESPIN ou da calamidade de que trata a Lei 13.979/2020 serão celebrados, inicialmente, pelo prazo máximo de seis meses, podendo ser prorrogados enquanto durar a situação.

Por fim, com base na Lei 13.979/2020, o edital pode obrigar o contratado a aceitar acréscimos ou supressões contratuais de até 50% (cinquenta por cento) do valor do contrato, dobrando-se a previsão contida no art. 65, § 1º, da Lei 8.666/1993.

Passa-se, agora, a analisar quais os impactos da ESPIN, ESPII e da calamidade nos contratos administrativos já em vigor.

 

3 REPERCUSSÕES NOS CONTRATOS JÁ EM VIGOR*

* Por Gregory de Lima Barbosa

Os efeitos da pandemia causada pelo novo coronavírus (COVID-19) não impactam apenas como na forma da Administração Pública contratar, mas também nos contratos já em vigor, em diversas ordens.

Neste tópico, portanto, está-se a falar dos contratos celebrados antes da decretação do ESPIN, ESPII e do estado de calamidade, que permanecem regidos pela legislação ordinária, vigente ao tempo de sua celebração.

Com a adoção de medidas como o teletrabalho para grande parte dos servidores públicos e continuidade apenas dos serviços entendidos como essenciais em vários órgãos, dúvidas pairam sobre como se dará o pagamento ao contratado, a eventual onerosidade excessiva e a possibilidade suspensão do contrato.

Não raramente, para executar o objeto do contrato o particular contratado depende de adquiri-lo de terceiros para entregar à Administração, como é o caso do fornecimento de bens, ou adquirir produtos/materiais que lhe permitam a execução de obra ou serviço.

Por depender dessas relações com terceiros, o particular contratado, que em decorrência do COVID-19 sofre com inúmeros fatores que afetam seu fluxo de caixa, passa a ter dificuldades financeiras para cumprir o avençado com a Administração.

Disto, surge a seguinte questão: pode a administração antecipar ou diminuir o prazo para pagamento previsto contratualmente?

A resposta é sim.

A Lei de Licitações e Contratos (n. 8.666/93), apesar de prever que devem constar do contrato as condições de pagamento, que segundo a ela própria não pode ser superior a 30 (trinta) dias, não veda o encurtamento do prazo originariamente previsto para o pagamento, tampouco sua antecipação, permitida pela Lei mediante concessão de desconto, sendo necessária quando da ocorrência de ambos os casos a lavratura de aditamento contratual[5].

Cumpre ressaltar que deve o gestor público guiar-se de cautela e devida justificativa do particular contratado, a fim de evidenciar a excepcionalidade da antecipação do pagamento, concedida mediante garantias de cumprimento da obrigação pelo particular, para se resguardar perante os órgãos controladores.

Outra questão relacionada aos contratos vigentes é a onerosidade excessiva do contrato causada por ato da Administração de suprimir o quantitativo contratual de pessoal ou de material, ou por outros fatos relacionados aos efeitos das medidas adotadas em razão do COVID-19.

Neste caso, sempre que houver alteração das condições originárias de execução do contrato em razão do COVID-19, por ato unilateral da Administração ou não, o particular tem direito a manutenção do equilíbrio das cláusulas econômico-financeiras do contrato[6].

Nesta perspectiva, especificamente quando o contrato em vigor envolver contratação de pessoal, pondera-se que por serem temporárias as medidas adotas em razão do COVID-19, não é aconselhável que o órgão contratante suprima até o limite legal (25%) unilateralmente, mas, sim, faça-o por acordo com o particular para evitar que ocorra demissão de funcionários e outros efeitos possivelmente devastadores[7], já que a normalização dos serviços pode ocorrer mais tempo ou menos tempo.

Entende-se ser esta medida a que melhor atende ao interesse público e preza pelo erário, tendo em vista que evita que o particular sofra danos, que podem resultar em indenização a seu favor quando decorrente da supressão[8].

Não obstante, em virtude da pandemia do novo coronavírus, também podem ocorrer situações em que seja necessária a suspensão da execução dos contratos vigentes, o que é permitido pela Lei de Licitações e Contratos, devendo ocorrer por ordem escrita do órgão contratante.

A suspensão da execução contratual deve se dar por motivo de interesse público até que perdure o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6/2020, com efeitos até 31/12/2020. Porém, sua ocorrência não constitui motivo para a rescisão do contrato[9].

Ressalta-se, oportunamente, que a suspensão apenas amplia o tempo do contrato, o qual deve ser prorrogado automaticamente por igual período, conforme ordenado pela Lei 8.666/93[10], e também que ela não retira a obrigação de reajuste anual constante dos contratos e nem de eventual reequilíbrio econômico-financeiro, quando devidamente comprovado sua necessidade.

Importa destacar que eventuais ocorrências devem ser analisadas em cada caso concreto, com a observância dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, a fim de se evitar, na maior medida do possível, grandes impactos para quando tudo voltar à normalidade.

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[1] Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6100:oms-declara-emergencia-de-saude-publica-de-importancia-internacional-em-relacao-a-novo-coronavirus&Itemid=812. Acesso em 27.3.2020.

[2] Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388. Acesso em: 27.3.2020.

[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm. Acesso em: 27.3.2020.

[4] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/31993957/publicacao/31994188. Acesso em 27.3.2020.

[5] Este entendimento encontra respaldo na análise conjunta das disposições do art. 40, inc. XIV, alíneas “a” e “d”, art. 55, inc. III, art. 65, inc. II, alínea “d” ambos da Lei n. 8.666/93 e art. 38 do Decreto n. 93.872/1986.

[6] A obrigação do restabelecimento do equilíbrio contratual quando advindo de ato unilateral é prevista no art. 58, §2º e quando advinda de situações e/ou medidas adotas em razão do COVID-19 no art. 65, alínea “d”, todos da Lei n. 8.666/93.

[7] O que se aconselha tem fundamento na possiblidade de alteração do contrato trazida pelo art. 65, inc. II, alínea “b” da Lei n. 8.666/93.

[8] A obrigação do pagamento de indenização por danos causados ao particular em decorrência da supressão do quantitativo contratual encontra amparo no art. 65, §4º da Lei n. 8.666/93.

[9] Art. 78, inc. XIV da Lei n. 8.666/93.

[10] Art. 79, §5º da Lei n. 8.666/93.