Artigo do advogado Giltônio Maurílio Pereira Santos analisa a PEC 241, que altera o Ato as Disposições Constitucionais Transitórias para instituir o Novo Regime Fiscal
Consideração Inicial
Este texto foi preparado tendo como fundamento a proposta que tramita hoje na Câmara dos Deputados. É provável que alguns dos pontos nos quais ele se sustenta venham a ser invalidados por alterações posteriores, até que a emenda finalmente entre em vigor – se entrar.
1 – INTRODUÇÃO
Embora muito tenha sido dito no campo político, tanto a favor quanto contra a proposta de emenda constitucional que institui o novo regime fiscal, observei, ao longo dos últimos dias, que o debate se pautou muito no que os debatedores em si esperam como resultado da implementação desse novo regime, e muito pouco no que o texto normativo efetivamente propõe. Ao longo deste curto ensaio, portanto, tentarei contribuir com esse outro lado da discussão. A pergunta, portanto, é a seguinte: em termos jurídicos, o que a PEC 241 representa? Tentarei responder a essa questão e, na sequência, tratar algumas afirmações que foram feitas a respeito do dispositivo que, em meu entendimento, não possuem qualquer conexão com o que está posto no texto que hoje tramita na Câmara. Ao final, apenas como provocação à reflexão do leitor, faço algumas considerações sobre como vejo o debate que estamos vivenciando hoje.
2 – A PEC 241
Como a própria proposta de emenda à Constituição nos diz, ela “altera o Ato as Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal”. Inicialmente, já se atenta para o fato de que a terminologia “novo regime fiscal” não nos parece tecnicamente correta. A proposta certamente traz alterações ao regime fiscal, que terão validade pelas próximas duas décadas, mas está longe de ser, como diz o texto, um “novo regime”. Alterações que dessem forma a um novo regime fiscal seriam, em nosso entendimento, muito maiores tanto em amplitude quando em profundidade, envolvendo também o sistema tributário nacional e os princípios que regulam as finanças públicas. A PEC 241, como veremos, tão somente estabelece limites para a expansão do gasto público nos próximos 20 anos. De outra maneira, o regime fiscal permanece o mesmo.
Como são estabelecidos tais limites? O texto proposto acrescenta ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias um artigo 102, que estabelece a fixação, em cada exercício fiscal, de um limite para a despesa primária total de cada um dos três Poderes da União, e também para entes públicos vinculados a eles ou não, desde autarquias e empresas públicas dependentes, até o Ministério Público Federal e o Tribunal de Contas da União.
Real objeto da PEC 241, a despesa primária, em síntese, pode ser entendida como o somatório de toda a despesa pública do exercício fiscal, subtraindo-se desse cálculo o que foi gasto com a dívida pública. Entram na conta, portanto, todas as despesas de capital, com exceção da amortização da dívida pública, e todas as despesas correntes, com exceção do pagamento de juros da dívida pública. Podemos dizer, assim, que todo o gasto feito para a efetivação das políticas públicas é despesa primária, desde a aquisição de um imóvel para instalação de certo órgão público, por exemplo, até a remuneração dos servidores que ali trabalharão.
É no §3º do referido artigo, no entanto, que encontramos o elemento a acender o debate público a respeito da proposta: ali, vemos o estabelecimento de um critério de fixação do limite mencionado acima, e o critério utilizado é o valor da despesa primária do ano anterior, acrescida neste cálculo da inflação acumulada ao longo do exercício, utilizando como critério de aferição o índice IPCA. Ou seja, sendo aprovada a PEC 241, a partir de 2017 não poderá haver, no âmbito da União, crescimento real da despesa primária no orçamento dos entes da Administração Pública Direta, Autárquica, Fundacional, assim como fundos e Empresas Públicas dela dependentes. Temos, assim, uma espécie de “quarentena” na expansão do gasto público, válida para os próximos 20 anos.
A regra, como haveria de se esperar, comporta exceções. Ficam excluídos desse limite, por exemplo, a participação que a União deve aos estados, Distrito Federal e municípios pela exploração de bens minerais em seus respectivos territórios, assim como os recursos utilizados pela Justiça Eleitoral para a realização de eleições, e as despesas extraordinárias derivadas de eventos como guerra ou calamidade pública. O §6º comporta um rol completo de tais exceções.
Finalmente, é importante ressaltar que sim, a proposta traz alterações no regime específico de ampliação do investimento público em saúde e educação, como é possível observar a partir da leitura de seu artigo 104. Isso ocorre porque, dentro do atual regime, a União é obrigada a gastar uma parte cada vez maior do seu orçamento líquido com ações e serviços de saúde, até chegar ao mínimo de 15% (o que ocorreria no exercício de 2020), e também é obrigada a gastar um mínimo de 18% de sua receita líquida de impostos com a manutenção e o desenvolvimento do ensino. Durante os 20 anos aos quais se refere a PEC 241, essa vinculação será substituída pelo mesmo cálculo utilizado na ampliação do restante do gasto. O que isso quer dizer é que mesmo que as receitas cresçam acima da inflação, o aumento desses gastos ficará restrito à inflação do exercício anterior.
Qual é o efeito prático da PEC 241? Considerando que o Brasil consiga superar a recessão que enfrenta hoje, e que a arrecadação suba, teremos uma realidade na qual as receitas sobem, mas a despesa primária permanece relativamente estável, ou seja, constituirá uma parte cada vez menor da arrecadação líquida, sendo o restante aplicável na amortização e pagamento de juros da dívida pública. Isso interrompe uma trajetória de crescimento do gasto público (e da dívida pública) e, se funcionar como esperam seus proponentes, deve reduzir o nível de endividamento da União em médio prazo. Como disse antes, não é meu objetivo aqui analisar o mérito político da questão, mas tão somente esclarecer e discutir algumas afirmações que têm sido feitas a respeito, o que faço no ponto seguinte.
3 – AS QUESTÕES MAIS COLOCADAS
Inegavelmente, a PEC 241 tem levado muitas pessoas a debater seu conteúdo no noticiário, nos órgãos políticos e principalmente nas redes sociais. É necessário, no entanto, saber o que é interpretação correta ou não do dispositivo normativo. Como cidadãos, todos nós temos o direito de nos posicionar contra ou a favor da proposta, e é certo que ela tem o potencial de alterar alguns dos fundamentos sobre os quais está assentado o sistema de direitos sociais, construído a partir da Constituição de 1988. Como, no entanto, ainda não é possível saber, e por isso é importante lançar luz sobre algumas das afirmações.
Tem sido dito, por exemplo, que a PEC 241 impedirá o investimento público, e isso não é tecnicamente correto. A despesa primária, como vimos acima, não é formada apenas por despesas de custeio: uma medida considerável do gasto da União envolve investimentos que poderão continuar sendo feitos, embora o aumento de tais investimentos esteja sim vinculado à despesa primária do exercício anterior, acrescida da variação inflacionária. Em tempo, devemos observar que até mesmo aumentar o investimento é possível, se a União for capaz de reduzir suas despesas de custeio.
Também temos ouvido que a PEC 241 vai sucatear a saúde e a educação, e o fato é que isso não é verdade. Constitucionalmente, a União não possui um teto para seus gastos com saúde e educação, mas sim um piso. É verdade que antes esse piso cresceria junto com a arrecadação, e agora ficará estável, mas isso impede que se gaste mais? Não, e como dissemos antes, reduzir o custeio em áreas pouco eficientes pode fazer com que reste mais dinheiro para as áreas mais necessitadas. Também não é verdade, como se tem dito, que a medida deixa a saúde desguarnecida para lidar com uma epidemia ou outra calamidade semelhante; a PEC 241 especificamente exclui os gastos resultantes de eventos extraordinários do limite estabelecido, o que inclui guerras, desastres, epidemias e eventos semelhantes.
Finalmente, não podemos esquecer que parte significativa do gasto público em saúde e educação não é operada pela União, mas sim por estados e municípios. Nesse sentido, podemos sim nos preocupar com a situação como ficará o ensino público federal, mas os recursos para as redes estaduais e municipais seguirão assegurados (inclusive os repasses da União, que não entram na conta do teto de despesa primária), e é delas a principal responsabilidade pelo ensino básico, do infantil ao médio. Dizer que o futuro da educação no Brasil está ameaçado em razão do enfraquecimento de instituições federais frequentadas por uma parcela ínfima e privilegiada da população me parece, na melhor das hipóteses, um exagero.
Nós temos ouvido também que a PEC 241 impede a realização de novos concursos e congela os vencimentos de servidores públicos. Mais uma vez, trata-se de informação tecnicamente incorreta. Essas medidas (como outras, que seriam incluídas no artigo 103) são sanções aplicáveis na hipótese de um Poder ou órgão não respeitar o teto de despesas previsto, e se aplicam apenas ao exercício seguinte àquele em que ocorreu o desrespeito. Trata-se de sanção grave? Certamente, mas quão grave é a conduta de se desrespeitar limites estabelecidos para o gasto público? Será mesmo que estamos em condições de tratar tal conduta como um “pecado menor”? Acredito que esse é um debate que a sociedade terá que fazer, cedo ou tarde.
CONCLUSÃO
O objetivo desse texto foi contribuir com o leitor na compreensão do que a PEC 241 é na prática. Embora eu tenha dito ao início que me concentraria nas questões técnicas, creio que cabe aqui concluir com algumas ponderações que julgo importantes, se queremos construir um posicionamento racional acerca das inovações radicais que essa proposta traz ao texto constitucional.
Quero começar dizendo que o Brasil não é um país rico. O volume da economia brasileira tende a nos iludir, mas o tamanho da população e sua distribuição pelo território fazem com que o pacto de direitos sociais estabelecido na Constituição seja, na prática, impossível de executar com os recursos dos quais dispomos hoje. Ao contrário do que alguns tentam fazer crer, isso não é corrigível somente com a expansão do gasto público: é necessário tornar a sociedade mais rica para tornar o Estado mais rico.
Temos em mãos muitos instrumentos que podem enriquecer a sociedade sem resultar em uma máquina pública maior. O Brasil pode promover grande distribuição de renda e geração de riqueza apenas com políticas como reforma agrária, regularização de ocupações urbanas, demarcação de territórios indígenas e quilombolas, ou mesmo com uma simples mudança na política de incentivos de bancos públicos, que não produziu o resultado desejado quando se concentrou em grandes tomadores, mas poderia promover aprimoramentos significativos na atividade de micro e pequenos empresários.
Parece simples reprodução de senso comum, mas nunca é demais dizer que também há espaço para expandir o gasto público eficiente através da redução do gasto ineficiente. A burocracia cotidiana nos órgãos públicos faz com que uma fatia sensível do orçamento se perca anualmente em procedimentos que só geram riqueza para os despachantes e advogados que se especializam em navegá-la. A informatização de setores burocráticos, por sua vez, também deve servir para redução dos gastos com pessoal sem perda de efetividade da prestação. Se isso de fato ocorrer – e devemos pressionar para que ocorra – sobrará mais dinheiro para cuidar do que realmente importa.
Acredito que o grande debate público acerca do tamanho do estado ainda está no horizonte, pois não há uma resposta correta para todos os países. O debate sobre gasto público responsável e sobre os instrumentos que nos levarão ao desenvolvimento, no entanto, pode estar acontecendo neste momento, e cabe a nós pressionarmos na direção correta, para não cairmos na armadilha de exigir do poder público mais do que ele efetivamente pode nos dar, deixando uma conta impagável para as próximas décadas.
Giltônio Maurílio Pereira Santos
Doutor em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado, professor e pesquisador, atua principalmente nas áreas de Teoria do Direito, Filosofia Política e Direito Público.