A necessidade da ampla defesa e do contraditório no desfazimento da licitação

O Estado Democrático de Direito é o paradigma jurídico-institucional adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[1]. Assim sendo, estabeleceu-se que “em processo judicial ou administrativo, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, conforme prescreve o art. 5º, inciso LV, da Carta Magna.

É evidente a inclusão, no texto constitucional, do princípio do devido processo legal como sendo aplicável também ao processo administrativo, afastando de vez a teoria que entende como processo apenas o judicial.

O Processo, seja ele judicial ou administrativo, como instituto submetido aos mandamentos constitucionais, visando a garantir aos litigantes o pleno exercício do contraditório, da ampla defesa e da isonomia, só alcançará um resultado final válido, se este for construído de maneira compartilhada entre as partes, em acordo com a argumentação e as provas produzidas pelos partícipes do processo.

A Lei Nacional de Licitações e Contratos, em seu art. 3º, dispõe claramente que “a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração”.

Da leitura do dispositivo acima, conclui-se que o procedimento licitatório deriva, necessariamente, de um processo administrativo, eis que não há como se garantir o princípio da isonomia entre os partícipes sem a presença do contraditório e da ampla defesa.

Nesse sentido, o art. 38 da Lei nº 8.666/93 dispõe o seguinte:

Art. 38. O procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente: (…)

Não restam dúvidas, pois, que as licitações públicas dependem de um processo administrativo regularmente instaurado, submetido aos mandamentos constitucionais fundamentais.

Estado Democrático exige a participação dos licitantes

Inobstante isso, ainda subsistem entendimentos no sentido de que nem sempre será obrigatória a observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório no processo licitatório.

Um dos mais recorrentes casos em que os tribunais pátrios dispensam a observância do mandamento constitucional é o previsto no art. 49 da Lei de Licitações, que trata da anulação e revogação da licitação, in verbis:

“Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado”.

A anulação é o ato da Administração que desfaz, obrigatoriamente, o processo licitatório por razão de ilegalidade, ao passo que a revogação está ligada aos critérios de conveniência e oportunidade administrativas.

O § 3º do dispositivo legal acima é claro ao determinar o seguinte:

“§ 3º. No caso de desfazimento do processo licitatório, fica assegurado o contraditório e a ampla defesa”.

A jurisprudência brasileira, contudo, mostra-se controversa quanto à aplicabilidade do § 3º do art. 49. Uma corrente entende que não se mostra necessária a observância do contraditório e da ampla defesa se o contrato ainda não foi assinado:

“RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. REVOGAÇÃO APÓS HOMOLOGAÇÃO. PREÇO ACIMA DO MERCADO. DILAÇÃO PROBATÓRIA. OFENSA A DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO CONFIGURADA.

1. O Poder Público pode revogar o processo licitatório quando comprovado que os preços oferecidos eram superiores ao do mercado, em nome do interesse público.

2. Para ultrapassar a motivação do ato impugnado seria necessária dilação probatória, incompatível com a estreita via do mandado de segurança.

3. O procedimento licitatório pode ser revogado após a homologação, antes da assinatura do contrato, em defesa do interesse público.

4. O vencedor do processo licitatório não é titular de nenhum direito antes da assinatura do contrato. Tem mera expectativa de direito, não se podendo falar em ofensa ao contraditório e à ampla defesa, previstos no § 3º do artigo 49 da Lei nº 8.666/93. Precedentes.

5. Recurso ordinário desprovido”[2].

O entendimento acima, porém, é juridicamente impossível de prevalecer. Conforme se depreende do art. 43 da Lei nº 8.666/93, o processo licitatório termina com a sua homologação e adjudicação do objeto ao vencedor. A assinatura do contrato já não faz mais parte do processo, de modo que, uma vez assinado o contrato, não é mais possível revogar o procedimento licitatório. A própria ementa acima transcrita menciona, claramente, que “o procedimento licitatório pode ser revogado após a homologação, antes da assinatura do contrato”.

Se somente o licitante que já assinou o contrato tem direito ao contraditório e à ampla defesa em caso de revogação do processo, logo não o terá jamais, pois, como falado, não há sequer possibilidade jurídica de o processo licitatório ser revogado depois da assinatura do instrumento contratual.

Outra corrente, mais acertada e alinhada aos ditames constitucionais do Estado Democrático de Direito, exige que os princípios do contraditório e da ampla defesa sejam observados e garantidos aos licitantes independentemente da fase em que se encontra a licitação:

“DIREITO ADMINISTRATIVO – LICITAÇÃO – ANULAÇÃO – AUSÊNCIA DE CONTRADITÓRIO – IMPOSSIBILIDADE.

A anulação ou revogação de processo licitatório deve ser precedida de oportunidade de defesa, exigindo-se plena justificação, sob pena de ferimento às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Recursos providos”[3].

“Número do processo: 1.0000.00.176341-6/000(1) – Relator: ORLANDO CARVALHO Data do Julgamento: 02/05/2000 Data da Publicação: 12/05/2000

Ementa: LICITAÇÃO – REVOGAÇÃO – AUSÊNCIA DE PROCEDIMENTO ASSECURATÓRIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA – INADMISSIBILIDADE. A Autoridade administrativa somente pode revogar o procedimento licitatório após a apuração dos fatos motivadores de sua decisão, em procedimento assecuratório do contraditório e da ampla defesa por parte dos licitantes, nos moldes do art. 49, § 3º da Lei nº 8.666/93.

Súmula: CONFIRMARAM A SENTENÇA NO REEXAME NECESSÁRIO, PREJUDICADO O RECURSO VOLUNTÁRIO”.

Ora, a Lei nº 8.666/93, ao exigir a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa, não restringe tais garantias apenas à revogação ou à anulação, nem ao momento em que cada um dos atos ocorre.

Assim, não cabe ao legislador restringir naquilo em que a Lei não restringe, principalmente no que tange aos direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Magna de 1988, que devem ser ampliados ao máximo para se dar efetividade aos princípios do Estado Democrático de Direito.

Corretamente, Marçal Justen Filho diz que, no caso de anulação ou revogação da licitação, aplicam-se as garantias do contraditório e da ampla defesa[4].

Diógenes Gasparini tem o mesmo entendimento:

“Previamente à revogação deve a autoridade superior comunicar ao vencedor da licitação dessas intenções, para que este, no prazo razoável que lhe for concedido, manifeste, exercendo o contraditório e a ampla defesa, o que for do seu interesse. A prática da revogação sem o atendimento dessas exigências é ilegal[5]”.

Fortalecendo ainda mais a tese aqui defendida, a Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, dispõe, em seu art. 2º, caput, o seguinte:

“Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.

Inexiste, assim, qualquer limite, por menor que seja, à aplicação dos princípios da ampla defesa e do contraditório nos casos de revogação ou anulação do processo administrativo, devendo os licitantes ser intimados para manifestarem-se, previamente, sobre a intenção da Administração de desfazer a licitação. É esse, certamente, o entendimento que mais se adéqua aos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito.

 

Referências

FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12 ed. São Paulo : Dialética, 2008.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 5 ed. rev. atual. e aum. São Paulo, Saraiva, 2000.

MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento e cognição: uma inserção no Estado Democrático de Direito. Curitiba: Juruá, 2008.


[1] MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento e cognição: uma inserção no Estado Democrático de Direito. Curitiba: Juruá, 2008.

[2] STJ, RMS 30481 / RJ, Rel. Min. ELIANA CALMON, 2 T.; j. 19.11.2009, p. DJe 02.12.2009.

[3] STJ, RMS 9738 / RJ, Rel. Min. GARCIA VIEIRA, 1 T.; j. 20.04.1999, p. DJe 07.06.1999.

[4] FILHO, MARÇAL JUSTEN. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12 ed. São Paulo : Dialética, 2008, p. 630.

[5] Gasparini, Diógenes. Direito Administrativo. 5 ed. rev. atual. e aum. São Paulo, Saraiva, 2000. pág. 489.

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14 respostas

  1. Prezado Gabriel:
    Li o seu artigo e gostei muito, porém estou em dúvida, em face da doutrina e da jurisprudência. Venho estudando licitações e contratos admnistrativos, há um bom tempo, em razão de minhas funções, e é na internet que retiro a maioria de minhas dúvidas. E, justamente, por esse motivo, cheguei a seu artigo, porque estou frente a um problema de anulação de Pregão. Pelo que já li e apreendi, inclusive, através do Prof. Marçal, e jurisprudência do STF, somente em caso de anulação de licitação, deve, obrigatoriamente, ser aberto o contraditório e a ampla defesa. Na revogação, se ainda não foi assinado o contrato, não há direito adquirido a preservar. Embora tenha o seu mesmo posicionamento, por entender que o contraditório e a ampla defesa são direitos fundamentais, que não podem ser preteridos, sob nenhum pretexto, nem sempre nossa opinião é acatada. Att.

    1. Prezada Graça,
      fico feliz que tenha gostado do artigo. De fato, a jurisprudência não é muito favorável ao entendimento que nele manifestei. Todavia, penso que o o entendimento que mais se aproxima dos preceitos constitucionais e do Estado Democrático é o que exige o respeito ao contraditório e à ampla defesa em todos os casos, tanto na anulação quanto na revogação.
      Agradeço muito pelo comentário e a convido para acessar nosso site mais vezes. Procuro publicar aqui vários artigos, muitos contrários ao entendimento comum. O objetivo é fomentar o debate.
      Um abraço,
      Gabriel da Cunha Pereira

  2. Prezado Gabriel:
    Li sua resposta, e estou voltando ao assunto, por um único motivo: o caso, que eu estava estudando, foi resolvido da maneira mais rápida e fácil possível.ALGUÉM solicitou a ALGUÉM, e esse alguém autorizou a abertura de novo edital, após a anulação, sem o contraditório. SIMPLES ASSIM!!! Estamos errados? Não. Mas, nesse nosso país do faz-de-conta, ao invés de “dura lex sed lex”, ainda vige a política de “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Lamentável, não???

  3. Caro Gabriel:
    Fui chamada, e tive q interromper meu comentário, e nem lhe disse tudo. Obrigada por sua resposta e por seu carinho. Não vai ser por isso que vou mudar meu entendimento, nem coadunar com os demais. Agradeço-lhe pelo convite e pode ter certeza de que estarei sempre aqui, acompanhando os seus artigos. Adoro comentar e trocar idéias, o que muito nos ajuda a alavancar nosso conhecimento. Sucesso!!! Att.

  4. Gabriel,

    Muito bom artigo.
    abordou por completo o desfazimento do processo licitatório assegurando o contraditório e a ampla defesa.

    Todas as duvidas foram sanadas.

    Muito obrigado.

  5. Olá!
    Não consigo acessar o julgado referenciado como nº 2.
    Se for possível, por favor, encaminhe um link com o acesso à íntegra do julgado para o meu e-mail, pois estou precisando muito de uma jurisprudência neste mesmo sentido.
    Grata,
    Iaciara.

    1. Prezada Iacara,

      o número do do Mandado de Segurança é RMS 30481 / RJ, e não 3481, como equivocadamente constava do artigo. Já fiz a alteração necessária.

      Obrigado pelo contato.

      Cordialmente,
      Gabriel Cunha Pereira

  6. Licitação. Pregão Eletrônico. Revogação. Produtos. Menor preço. A licitação foi revogada sob o argumeto de quebra de isonomia. O venvedor teria apresentado as amotras no prazo legal. Logo em seguida a pregoeira solicitou novas amostras complementares que o licitante vencedor apresentou-as no prazo solicitado.
    Licitação homologada. Ato publicado.
    Um dia antes da publicação um terceiro licitante (não classificado) havia impugnado a licitação em apreço argumentando a quebra de isonomia.
    Impugnação recebida e desclassificado o então licitante vencedor que nao deu causa ao vicio alegado (quebra de isonomia).

    Qual agora a(s) medida(s) que o licitante alijado do certame deve adotar ?

  7. Gostaria de tirar uma dúvida: Quando publiquei uma licitação, efetuei a nota de reserva com erro, disponibilizando todo o recurso para o mês de maio, porém deveria ter dividido o valor proporcionalmente até o final do ano. Devo revogar a licitação por conta disto?

  8. Adorei o seu artigo e gostaria de tirar uma dúvida: uma vez comunicado ao licitante acerca da revogação da licitação, qual o prazo ara ampla defesa e contraditório e qual a base legal?
    Grata!

  9. Muito bom esse artigo, mas fiquei com uma dúvida: se a administração revogar a licitação no dia da licitação, porém antes da abertura dos envelopes com a documentação da habilitação, alegando motivo superveniente, embasado em parecer jurídico, haverá necessidade de conceder ampla defesa e contraditório aos participantes? E havendo dúvida sobre o fato superveniente, haverá possibilidade de algum recurso?

    1. Prezada Jade,

      primeiramente, agradeço pela leitura do artigo e pelo elogio. Respondendo sua pergunta, entendo que independentemente do momento da revogação, a Administração deve sempre conceder o direito ao exercício da ampla defesa e contraditório, pois a Lei 8.666 não faz qualquer restrição nesse sentido. Essa necessidade decorre justamente do direito do licitante de fiscalizar a fiel observância do procedimento instituído por lei, ou seja, o licitante pode e deve fiscalizar se realmente há esse fato superveniente justificador da revogação. Nesse caso, há sim possibilidade de recurso, nos termos do art. 109, inc. I, alínea “a”, da Lei de Licitações.

      Um abraço.

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