A ONG, o escândalo, a norma e a ética

Por Ana Vitória Wernke

O Estado Democrático de Direito preconiza a participação popular por meio da associação de pessoas interessadas em um fim último: o bem ao próximo. O Brasil é, por excelência, um estado formado com base nesta caridade cristã. Remonta aos tempos do Brasil Colônia a atuação dos religiosos franciscanos e jesuítas, mais tarde os vicentinos, que se empenharam estritamente, sem intenções outras, no amparo de idosos e órfãos, na formação gratuita de jovens e distribuição um pouco menos desigual da renda produzida no país. Tais organizações atravessaram os tempos, os regimes políticos, foram para além de práticas religiosas, provando que são inerentes à condição humana.

O Estado laico, sem a intervenção religiosa, regulamentou a atuação destas agremiações, passando pela Lei da Utilidade Pública (Lei nº 91/1935) e pela Lei da Filantropia (Lei nº 8.742/93, alterada pela Lei nº 12.101/09). No entanto, a mais polêmica destas regulamentações foi, sem sombra de dúvidas, a chamada Lei das OSCIP’s, Lei nº 9.790/99, regulamentada pelo Decreto nº 3.100/99 e alterada pelo Decreto Presidencial nº 7.568/11.

Onde está a polêmica? A Lei nº 9.790/99 abriu uma enorme possibilidade, tornando possível a contratação, camuflada sob a insígnia de parceria, de associações qualificadas como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público sem que passassem pelo crivo da Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei 8.666/93). Por ser norma de caráter especial, recaía na primeira parte do inciso XXI, do art. 37, da Constituição da República (XXI – ressalvados os casos especificados na legislação…), daí não ser inconstitucional. Além disso, o texto era literal em afirmar que o ente público “poderá”, ao invés de “deverá”, escolher a entidade por meio de concurso público, criando uma porta para contratações fugidias e irregulares. A referida abertura era aclamada por aqueles que desejavam fazer mau uso da coisa pública e repudiada pelas instituições sérias, posto que atraiam para si o olhar desconfiado dos órgãos de controle e fiscalização.

No entanto, confiante no adágio popular “há males que vem para bem”, após os escândalos de corrupção envolvendo Ministério do Turismo e dos Esportes, a Presidência da República promulgou, em setembro de 2011, o Decreto nº 7.568, que, em linhas gerais, aumenta o rigor para o estabelecimento de termos de parceria, convênios e contratos de gestão com o Poder Público. Dentre as modificações está a obrigatoriedade da realização de chamamento público ou concurso para escolha de projetos, sendo, em caso de exceção como calamidade pública, por exemplo, obrigatória a justificação fundamentada por parte da autoridade máxima do órgão estatal parceiro.

O Decreto nº 7.586/11 veio atender um anseio das associações do terceiro setor, que são, em sua avassaladora maioria, sérias e comprometidas com a causa do bem estar comum. A saber, muitas não contam e nunca contaram com dinheiro público. Ao trazer normas mais claras e diretas sobre o estabelecimento de instrumentos jurídicos, como termos de parcerias e convênios, o decreto oportunizou a participação de entidades desvencilhadas de compromissos políticos e dotadas de efetivo atendimento ao interesse público. Organizações não governamentais que vêm sofrendo preconceitos pela ação inescrupulosa de poucos. Entidades que remontam o nascimento do Brasil e da formação solidária do povo brasileiro.

Entretanto, há que se ter presente que em nada adianta uma norma sem eficácia. Há que se dispor de todos os métodos de controle das prestações de contas, da fiscalização do desenvolvimento e entrega dos objetos de convênios, termos de parceria e instrumentos congêneres, pelos órgãos e pela população em geral. Fechar as possibilidades para a ilegalidade já é um bom caminho a seguir. Pode-se exigir, pela letra da lei, daqueles que são desprovidos de ética.

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