Administração não pode deixar de honrar compromissos

Advogado explica como legislação veda e pune prática e fala de suas consequências

cunha-pereira-massara-administracao-honrar-pagamentosSegundo dados da Confederação Nacional dos Municípios 60% das prefeituras do país vão fechar o ano no vermelho. No plano estadual, vários governadores já acenam com uma possível moratória dos juros da dívida pública. Tudo isso enquanto a União estima um déficit de R$170 bilhões em 2016.

Com as contas públicas em “frangalhos”, já começam a surgir notícias de atrasos no pagamento de contratos e dos próprios servidores. Em Minas, por exemplo, os pagamentos de parte do funcionalismo têm ocorrido de forma escalonada desde fevereiro. Mas a Administração poderia/deveria atrasar pagamentos? Para o advogado Gabriel Senra da Cunha Pereira­, sócio do escritório Cunha Pereira & Massara Advogados Associados, a resposta é simples. “Nem o pior dos cenários econômicos autoriza a Administração Pública a deixar de cumprir com suas obrigações de pagamento. Isso porque a Constituição da República de 1988 veda expressamente a realização de quaisquer despesas ou mesmo a assunção de obrigações financeiras que não estejam previstas em orçamento”, pondera.

Em artigo que você poderá conferir abaixo, o advogado discorre sobre uma série de dispositivos legais que vão de encontro a essa prática e também suscita a discussão sobre as consequências diretas e indiretas disso para a economia do país.

As consequências do atraso de pagamentos pela Administração Pública

São inegáveis as dificuldades decorrentes do momento econômico por que passa o Brasil, com uma contínua deterioração das contas públicas sem distinção de esfera administrativa ou partido político. Especialmente nos dois últimos anos, União, Estados e Municípios de todo o território nacional vêm sofrendo com uma considerável queda de arrecadação. Somado a isso, os entes federados convivem historicamente com a péssima gestão do dinheiro público. Inchaço da máquina administrativa, despesas inúteis voltadas à manutenção de privilégios incompatíveis com a ordem democrática do séc. XXI, aquisições de péssima qualidade… enfim, diversos fatores desencadearam a situação atual e que, infelizmente, não se tem notícia de que serão solucionados no curto ou médio prazo.

O ano de 2016 trouxe consigo péssimas notícias para servidores públicos e fornecedores da Administração, que vêm sofrendo recorrentes atrasos em seus pagamentos – situação comum até meados da década de 90, mas que todo brasileiro supunha, ou no mínimo esperava, já ter sido superada.

Se por um lado o atraso de salários causa enormes danos às famílias, por outro, o atraso de pagamento de fornecedores não é menos grave. Neste caso, quebra-se toda uma cadeia produtiva na órbita da empresa contratada, fazendo com que ela atrase também os pagamentos de seus próprios fornecedores e, mais que isso, de seus funcionários, chegando às demissões e até à ruína da empresa, cujas consequências são nefastas para a economia e para a qualidade de vida das pessoas direta ou indiretamente envolvidas naquele negócio.

Entretanto, tal qual ocorre no mercado privado, nem o pior dos cenários econômicos autoriza a Administração Pública a deixar de cumprir com suas obrigações de pagamento. Uma vez celebrado e executado o contrato, nem mesmo a irregularidade fiscal do contratado pode servir de justificativa para a inadimplência (sobre isso, vide artigo já publicado em nosso site.)

Isso porque a Constituição da República de 1988 veda expressamente a realização de quaisquer despesas ou mesmo a assunção de obrigações financeiras que não estejam previstas em orçamento, veja-se:

Art. 167. São vedados:

II – a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais;

A Lei de Licitações e Contratos Administrativos, por sua vez, também exige que todo edital de licitação contenha uma cláusula específica sobre as condições de pagamento que preveja, dentre outros, o cronograma de desembolso em conformidade com a disponibilidade de recursos:

Art. 7º. (…)

§ 2º. As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando:

III – houver previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das obrigações decorrentes de obras ou serviços a serem executadas no exercício financeiro em curso, de acordo com o respectivo cronograma;

IV – o produto dela esperado estiver contemplado nas metas estabelecidas no Plano Plurianual de que trata o art. 165 da Constituição Federal, quando for o caso.

§ 6º. A infringência do disposto neste artigo implica a nulidade dos atos ou contratos realizados e a responsabilidade de quem lhes tenha dado causa.

Art. 14. Nenhuma compra será feita sem a adequada caracterização de seu objeto e indicação dos recursos orçamentários para seu pagamento, sob pena de nulidade do ato e responsabilidade de quem lhe tiver dado causa.

Art. 40. O edital conterá no preâmbulo o número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para início da abertura dos envelopes, e indicará, obrigatoriamente, o seguinte:

XIV – condições de pagamento, prevendo:

a) prazo de pagamento não superior a trinta dias, contado a partir da data final do período de adimplemento de cada parcela;

b) cronograma de desembolso máximo por período, em conformidade com a disponibilidade de recursos financeiros;

E, mais ainda, a Lei 8.666/93 exige que o contrato celebrado com o fornecedor especifique a qual dotação orçamentária a despesa está vinculada, de modo a “amarrar” ainda mais a despesa com uma receita específica prevista em lei orçamentária:

Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:

III – o preço e as condições de pagamento, os critérios, data-base e periodicidade do reajustamento de preços, os critérios de atualização monetária entre a data do adimplemento das obrigações e a do efetivo pagamento;

V – o crédito pelo qual correrá a despesa, com a indicação da classificação funcional programática e da categoria econômica;

São tantos os procedimentos burocráticos (no bom sentido da palavra) obrigatórios para a realização da despesa que é inaceitável que a Administração não disponha de recursos financeiros para arcar com suas obrigações contratuais.

Se a despesa já empenhada é obrigação de pagamento com prévia e suficiente dotação orçamentária prevista em lei e no contrato celebrado entre as partes, em tese qualquer recurso financeiro cujo pagamento esteja atrasado já deveria estar, no mínimo, reservado para aquele fim exclusivo quando da emissão dos empenhos e recebimentos dos produtos ou serviços pela Administração.

Segundo Marçal Justen Filho,

“A Administração apenas pode realizar um contrato após cumprir minuciosas formalidades prévias. A Administração tem o dever de avaliar, previamente, a necessidade da contratação, apurar a existência de recursos orçamentários e programar desembolsos. Logo, a ausência de recursos efetivos para o pagamento é um contrassenso injustificável. Pressupõe, necessariamente, a ofensa a Lei orçamentária. O ‘inadimplemento’ somente pode chegar a ocorrer se, em algum momento, um agente administrativo tiver descumprido a lei. Mais ainda, o descumprimento à lei ocorreu de modo consciente e planejado, pois os agentes administrativos encontram-se em situação de prever, com antecedência, o desenlace dos fatos”[1].

Daí que, se há inadimplência por parte Administração, é porque houve alguma falha grave no âmbito interno do órgão devedor, como, por exemplo, o desvio do recurso inicialmente destinado à despesa contratada para outra finalidade ou o pagamento de outras faturas de mesma fonte de recursos vencidas posteriormente à fatura emitida pela requerente, o que é vedado pelo art. 5º, da Lei 8.666/93[2].

Todos esses os casos configuram ilícitos administrativos e impõem a responsabilização da autoridade competente, sendo que a última hipótese ainda pode configurar o crime previsto na última parte do art. 92 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos:

Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei:

Pena – detenção, de dois a quatro anos, e multa.

A Lei de Improbidade Administrativa também pode eventualmente ser aplicada contra o servidor público responsável pelo não pagamento pelo serviço tomado ou bem adquirido, nos termos do art. 10, da Lei nº 8.429/92:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

 (…)

XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular;

Não se pode deixar de observar também os avanços trazidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, ao dispor que a gestão fiscal da Administração Pública “pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas (…)” (art. 1º, § 1º).

Por seu turno, os fornecedores também dispõem de diversos meios legais para prevenir a ocorrência de maiores danos e também de ser civilmente ressarcidos, caso já estes tenham se consumado.

Ao contrário do que equivocadamente se pratica, não é necessário que o atraso da Administração seja superior a noventa dias para que se suspenda a execução contratual. Basta que a inadimplência, comprovadamente, imponha onerosidade excessiva à empresa, impedindo-a de executar fielmente o ajuste, para que os prazos de execução sejam alterados, conforme se extrai da leitura do art. 57, § 1º, inc. VI, da Lei de Licitações:

Art. 57. […]

§ 1o. Os prazos de início de etapas de execução, de conclusão e de entrega admitem prorrogação, mantidas as demais cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro, desde que ocorra algum dos seguintes motivos, devidamente autuados em processo:

[…]

VI – omissão ou atraso de providências a cargo da Administração, inclusive quanto aos pagamentos previstos de que resulte, diretamente, impedimento ou retardamento na execução do contrato, sem prejuízo das sanções legais aplicáveis aos responsáveis.

Esse é o exato sentido do art. 478 e seguintes do Código Civil Brasileiro:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

O atraso superior a noventa dias constitui-se, na verdade, motivo para a rescisão contratual, sendo assegurado ao contratado, em vez de fazê-lo, optar por suspender o cumprimento de suas obrigações até a normalização da situação.

A suspensão da execução contratual visa exatamente a evitar que o particular seja penalizado pela inadimplência do órgão contratante, fazendo cessar eventuais danos já sofridos. Não se olvide ainda que o atraso de pagamento acarreta enriquecimento ilícito da Administração em detrimento do particular, desequilibra a equação econômico-financeira inicial e viola regra constitucional prevista no art. 37, inciso XXI, que impõe ao Poder Público que “as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta.”

Tal situação, ademais, não impede que os danos sofridos sejam objeto ação por perdas e danos contra o ente mau pagador, nos termos do art. 927 do Código Civil, c/c art. 37, § 6º, da Constituição da República de 1988:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Art. 37. (…)

§ 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Conclui-se que a Administração Pública, obrigada que é a cercar-se de tantos cuidados legalmente impostos, não tem o direito de atrasar os pagamentos de seus fornecedores, o que lhe pode impor consequências administrativas, civis e até mesmo criminais. Já aos contratados cabem os direitos de suspender suas obrigações contratuais e cobrar judicialmente do órgão contratante os danos que porventura vier a sofrer em razão da inadimplência contumaz.

Resta às instituições de controle interno e externo da Administração, uma vez provocadas, instaurarem os competentes procedimentos judiciais ou administrativos que visem à responsabilização das autoridades competentes, de modo a pôr fim a essa terrível prática que assola o país e faz muito mal à imagem do estado brasileiro.

 


[1] FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15ª ed., São Paulo, Dialética, 2012, p. 980.

[2]Lei nº 8.666/93: “Art. 5º. Todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no art. 42 desta Lei, devendo cada unidade da Administração, no pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada.”

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