Criminalização da homofobia pelo STF: uma disputa entre a lei e a moral

Por Fernando Landim da Cunha Pereira

No último dia 13 de junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26, que fora protocolizada ao final do ano de 2013 pelo Partido Popular Socialista (PPS). O partido requereu, em suma, que o Tribunal impusesse ao Poder Legislativo o dever de editar lei para criminalizar todas as formas de homofobia e transfobia, sendo que, se o Congresso Nacional se mantivesse inerte, que o próprio STF tipificasse os crimes de homofobia e transfobia da forma que entendesse adequado.

O PPS se baseava no art. 5º, incisos XLII, XLI e LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988), aduzindo que

“todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima constitui discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais, pois: (i) viola o direito fundamental à liberdade, pois implica negação à população LGBT de realizar atos que não prejudicam terceiros e que não são proibidos pela lei; (ii) viola o direito fundamental à igualdade, pois não há fundamento lógico-racional que justifique a discriminação [negativa] da população LGBT relativamente a heterossexuais não-transgêneros”.

Juntamente com a ADO nº 26, o STF julgou o Mandado de Injunção nº 4733, impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), que também pedia o reconhecimento da mora legislativa em criminalizar o crime de homofobia e transfobia, e pedia que o Tribunal suprisse a ausência da lei criando os tipos penais.

O Plenário do STF conheceu parcialmente das ações e, por oito votos a três, julgou-as procedentes para reconhecer a mora legislativa em editar lei criminalizando atos de homofobia e transfobia e dar interpretação de forma a enquadrar tais manifestações como crimes raciais previstos na Lei nº 7.716/89.

Em que pese a nobre intenção de proteger a comunidade LGBT, que inegavelmente sofre constantes lesões e ameaças aos seus direitos fundamentais, a questão merece análise mais aprofundada no que tange à possibilidade de o STF “legislar” em matéria penal ou aplicar interpretações extensivas e analógicas em relação a tipos penais já existentes.

Num primeiro momento, cumpre ressaltar que é inquestionável a mora legislativa em editar a lei penal para proteger a população LGBT, o que foi reconhecido por dez dos onze ministros, haja vista terem se passado mais de trinta anos desde a promulgação da CRFB/1988 sem a edição de qualquer lei nesse sentido.

Nesse aspecto, bem destacado também pelo então Procurador-Geral da República (PGR), Rodrigo Janot, que em sua manifestação nos autos da ADO, argumentou que a mera existência de projeto de lei em tramite no Congresso não obsta o reconhecimento da omissão legislativa, conforme precedentes firmados no próprio STF (vide ADI 3.682/MT).

Inegável também que a mora legislativa causa prejuízos incalculáveis às vítimas da homofobia e transfobia, valendo-se a menção à fala da ministra Rosa Weber: “quem é atacado, discriminado, tem pressa”.

Apesar da omissão do Congresso, a criação de um tipo penal pelo STF encontra óbice em um dos princípios elementares do Direito Penal, chamado de “Princípio da Reserva Legal Absoluta”, o qual garante que apenas a lei em sentido estrito pode criminalizar determinada conduta.

Tal princípio é previsto no art. 5º, inciso XXXIX, da CRFB/1988, e no art. 1º do Código Penal, que determinam que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Assim, por vedação legal e constitucional, impossível a criação de novo crime pela via judicial.

Sobre o tema, é o que se extrai da doutrina do respeitado professor Cézar Roberto Bitencourt:

“(…) pelo princípio da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida.” (BITENCOURT, 2004)[1]

Ultrapassada a questão da criação de novo tipo penal, entra-se em ponto do debate mais sensível e que foi justamente a saída encontrada pelo STF para criminalizar a “LGBTfobia”: interpretar os crimes de ódio contra homossexuais e transexuais como crimes raciais, já previstos na Lei 7.716, de 1989.

É o que defendeu o ministro decano do STF, Celso de Mello que, acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, entendeu que crimes motivados por questões de orientação sexual deveriam ser interpretados como crimes de racismo até que o Congresso Nacional edite lei criminalizando a mencionada conduta.

Contudo, a saída encontrada pelos ministros, apesar de bem-intencionada, também encontra impedimento em outro princípio elementar do Direito Penal, o chamado “Princípio da Tipicidade Fechada” ou “Princípio da Estrita Legalidade”.

É que, em se tratando de matéria penal, o julgador não pode fazer interpretações dos tipos penais de forma extensiva ou análoga, principalmente se em desfavor do praticante daquela conduta. Inclusive, é o que definiu o próprio STF no julgamento do Habeas Corpus (HC) 97261, no qual o então ministro Joaquim Barbosa relatou que não seria possível equiparar a captação ilegal de sinal de televisão com furto de energia elétrica:

EMENTA: HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE RECURSAL DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. INTERCEPTAÇÃO OU RECEPTAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE SINAL DE TV A CABO. FURTO DE ENERGIA (ART. 155, §3º, DO CÓDIGO PENAL). ADEQUAÇÃO TÍPICA NÃO EVIDENCIADA. CONDUTA TÍPICA PREVISTA NO ART. 35 DA LEI 8.977/95. INEXISTÊNCIA DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. APLICAÇÃO DE ANALOGIA IN MALAM PARTEM PARA COMPLEMENTAR A NORMA. INADMISSIBILIDADE. O BEDIÊNCIA A O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ESTRITA LEGALIDADE PENAL. PRECEDENTES. O assistente de acusação tem legitimidade para recorrer de decisão absolutória nos casos em que o Ministério Público não interpõe recurso. Decorrência do enunciado da Súmula 210 do Supremo Tribunal Federal. O sinal de TV a cabo não é energia, e assim, não pode ser objeto material do delito previsto no art. 155, § 3º, do Código Penal. Daí a impossibilidade de se equiparar o desvio de sinal de TV a cabo ao delito descrito no referido dispositivo. Ademais, na esfera penal não se admite a aplicação da analogia para suprir lacunas, de modo a se criar penalidade não mencionada na lei (analogia in malam partem), sob pena de violação ao princípio constitucional da estrita legalidade. Precedentes. Ordem concedida. (HC 97261, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 12/04/2011, DJe-081 DIVULG 02-05-2011 PUBLIC 03-05-2011 EMENT VOL-02513-01 PP-00029 RTJ VOL-00219-01 PP-00423 RT v. 100, n. 909, 2011, p. 409-415)

 Sabendo da vedação para enquadrar atos atentatórios à comunidade LGTB como crime de racismo, sabiamente os ministros, acompanhados pelo parecer da PGR, alegaram que não se trata de analogia in malam partem, mas sim de mutação de conceitos jurídicos, adequando o termo raça à realidade brasileira atual.

Contudo, o argumento é frágil, uma vez que, se o conceito de raça realmente fosse adequado à comunidade LGBT em geral, tais termos não estariam separados em projetos de lei do congresso que visam justamente criminalizar condutas relacionadas ao ódio a homossexuais e transexuais.

Para entender melhor, tem-se o projeto de lei PLS 515/2017, que altera a Lei 7.716/1989 (Lei de Racismo), e o artigo 140, § 3º, do Código Penal (CP), que incluem as condutas motivadas por discriminação ou preconceito em razão de orientação sexual ou identidade de gênero.

A título de exemplo, veja-se a alteração pretendida ao art. 20 da Lei 7.716/1989, que passaria a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. Pena: reclusão de um a três anos e multa” (g.n.)

Logo, se é a intenção do legislador incluir as expressões “orientação sexual ou identidade de gênero” ao lado do termo já existente “raça”, é porque, obviamente, não possuem o mesmo significado.

Se assim não fosse, não seria necessário enfrentar todo o processo legislativo para a inclusão dos termos ali adicionados, uma vez que eles já estariam incluídos no conceito de raça, bastando deixar para o poder judiciário interpretar o tipo penal da forma adequada.

É fácil perceber que o próprio ministro relator da ADO nº 26, Celso de Mello, não se convenceu totalmente que a comunidade LGBT se enquadra como raça, já que decidiu que os crimes de homofobia e transfobia se enquadrariam como crimes raciais somente até que entrasse em vigor a lei que criminalizasse tais condutas, ou seja, tal enquadramento seria apenas temporário.

O mesmo entendimento se pode extrair do voto do ministro Luís Roberto Barroso, que afirmou que a vontade do legislador merece prevalecer independentemente do resultado da votação pelo Congresso Nacional. Portanto caso o citado projeto de lei não fosse aprovado, tal vontade deveria ser respeitada.

Ora, se se trata de “atualização de conceitos jurídicos”, a não aprovação do projeto de lei não seria óbice a manutenção dos efeitos da decisão, ao contrário do que sugerira o ministro.

Diante disso, não restam dúvidas que a interpretação da “LGBTfobia” como racismo se trata, sim, de analogia in malam partem, vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Cumpre salientar que apesar de até o presente momento não existir lei que crie causas de aumento de pena específicas para casos de homofobia e transfobia, a comunidade LGBT não está completamente desamparada pelo Direito Penal, pois os crimes motivados pelo ódio contra esses grupos podem punidos por outros tipos penais já existentes.

Por exemplo, o crime de injúria (art. 140, CP) já prevê a pena para a pessoa que ofende a dignidade ou decoro de outrem, seja em razão de homofobia ou não. Outro exemplo é o crime de homicídio (art. 121, CP), que também serve para punir aqueles matam alguém motivado por questões de orientação sexual ou identidade de gênero, sendo que nesse caso ainda persiste a qualificadora prevista no § 2º, inciso II (por motivo fútil), para aplicar uma punição mais adequada àquela conduta.

A despeito de todo o exposto, a criminalização da “LGTBfobia” foi “autorizada” pelo Supremo Tribunal Federal, por oito votos a três, concretizando a usurpação de competência do Poder Legislativo.

Acerca da violação ao princípio da separação dos poderes, acertadamente afirmou o ministro Marco Aurélio, um dos três ministros a votar contra os pedidos formulados na ação:

“A eventual opção pela criminalização de condutas motivadas pela orientação sexual ou identidade de gênero há de se dar na esfera própria, não no plenário do Supremo, não podendo esta omissão ser suplantada pela extensão da lei em vigor.”

Por fim, o ministro Dias Tóffoli, acompanhando Ricardo Lewandowski, que também se posicionaram contra a criminalização das condutas pela esfera judiciária, de forma brilhante concluiu:

“Todos os votos proferidos, mesmo com divergência, reconhecem o repúdio à discriminação, ao ódio, ao preconceito e à violência por razões de orientação sexual. (…) Bom seria que não houvesse a necessidade de enfrentar esse tema em 2019”

Independentemente do exposto, não há dúvidas da necessidade de criar tipos penais focados em proteger a comunidade LGBT, visando a coibir a prática de crimes de ódio e atender à exigência constitucional. Porém, tais medidas devem ser tomadas pelos meios adequados, sob pena de se ferirem os próprios direitos humanos e fundamentais, que servem para proteger não só a vítima, mas também o infrator.

É necessário o respeito e observância dos princípios norteadores do Direito Penal, bem como ao sagrado princípio da separação dos poderes, a fim de evitar decisões autoritárias que ignoram o processo legislativo democrático.

[1] Tratado de direito penal: parte geral. Vol.I. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 10.

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