Por Lis Veronica de Souza Moreira
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A permissão legal para a alteração unilateral das cláusulas contratuais inicialmente pactuadas entre Administração e contratado se fundamenta na mutabilidade do interesse público, o qual se busca tutelar no contrato.
Diversamente do sistema que rege as relações contratuais privadas, em que o contrato obriga rigorosamente as partes ao que ali fora pactuado (pacta sunt servanda), o regime jurídico dos contratos administrativos admite a possibilidade de a Administração modificá-los unilateralmente, para melhor adequá-los ao interesse público pretendido.
Vale dizer que tal prerrogativa não decorre de uma condição de superioridade da Administração em relação ao contratado, mas senão de sua condição de curadora do interesse público.
A mutabilidade do interesse público, pois, é imanente à natureza do contrato administrativo, assim como os princípios da sua supremacia e indisponibilidade.
É o que se deduz o art. 58, I, da Lei de Licitações e Contratos, 8.666/1193, mantido inalterado no texto do art. 104, I, da Nova Lei, 14.133/21, in verbis:
‘Art. 104 O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:
I – Modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado’.
Isso autorizaria, por exemplo, a Administração a exigir unilateralmente do contratado o aumento no fornecimento de determinado produto ou no objeto da prestação do serviço, se, por razões supervenientes à assinatura do contrato, assim se fizesse necessário.
Mas, no dia a dia das contratações públicas, o que se vê é a constante utilização da permissividade de alteração do contrato administrativo instrumento de correção dos erros originados na fase interna de planejamento.
A falta de organização e programação dos entes públicos para contratar – principalmente no âmbito municipal -, acarreta inúmeras falhas na elaboração dos termos de referência ou projetos básicos, cujos contratos necessitam ser frequentemente alterados ao longo da execução contratual.
É como se o gestor se permitisse uma certa margem de erro durante o planejamento, de modo que, se no futuro vier a ser constatada alguma incorreção, essa poderá ser sanada a partir da alteração de dispositivos contratuais.
Essa conduta, no entanto, deve ser fortemente combatida e os gestores públicos devem estar cada vez mais cientes da importância de um bom planejamento para uma gestão contratual mais assertiva e sem (tantos) embaraços.
De toda forma, as modificações unilaterais dos contratos administrativos têm limites, não podendo ser realizadas de maneira irrestrita. E a justificativa para tanto é o fato de que ainda que a ideia seja salvaguardar o interesse público, em muitas situações a sua proteção irá esbarrar em outras premissas de Direito, as quais devem ser sopesadas na aplicação da lei.
Neste sentido, toma-se como exemplo uma alteração contratual que se proponha, em verdade, a modificar a natureza do objeto contratado.
Seria o caso de uma contratação inicial de empresa especializada nos serviços de engenharia elétrica, para modernizar os parques de iluminação pública de determinadas vias de um município, e que, após a alteração contatual, passa-se a se exigir a pavimentação daquelas vias.
Nesse caso, ainda que se argumente no sentido de a pavimentação atender ao interesse público, a atitude em questão violaria o próprio princípio da obrigatoriedade da licitação, prevista no art. 37, inciso XXI, da Constituição. Haveria violação também aos princípios da vinculação ao instrumento convocatório, da competitividade e da isonomia, já que muitas outras empresas poderiam ter se interessado na participação do certame se soubessem que o objeto, por fim, seria pavimentação de vias.
A despeito de ser a supremacia do interesse público o fundamento principal para a admissão da alteração do objeto do contrato, não se admite a mudança de sua essência, consagrando, assim, a ideia da intangibilidade do objeto.
A Nova Lei de Licitações tratou de sedimentar o assunto expressamente em seu art. 126:
Art. 126. As alterações unilaterais a que se refere o inciso I do caput do art. 124 desta lei não poderão transfigurar o objeto da contratação.
Agir de maneira diversa seria elevar absurdamente o risco de se contratar com a Administração Pública, pois a qualquer momento as cláusulas contratuais poderiam ser revistas e o objeto totalmente transfigurado. Daí então decorre a necessidade de buscar maneiras de se proteger o contratado na relação jurídica.
A proteção aos direitos do contratado como baliza às modificações contratuais de forma unilateral pela Administração está prevista na parte final do inciso I do art. 104 da lei 14.133/21.
No intuito de criar parâmetros para assegurar a proteção desses direitos do contratado – além da proibição à transmutação do objeto -, a legislação definiu limites objetivos para as alterações, conforme disposto nos arts. 65, § 1º, da lei 8.666 e art. 125 da Nova Lei, o qual faz referência expressa ao art. 124.
Os dispositivos da Nova Lei de Licitações, quando interpretados em conjunto, encerram o dissenso existente na doutrina administrativista acerca dos limites objetivos para as alterações de caráter qualitativas, como falaremos a seguir. Antes, porém, impõe-se distinguir as duas modalidades de alterações unilaterais previstas em lei.
As alterações unilaterais dos contratos públicos podem ser de ordem qualitativa ou quantitativa e estão previstas no art. 124, inciso I (antes, art. 65, I, da lei 8.666):
Art. 124. Os contratos regidos por esta lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
I – Unilateralmente pela Administração:
a) quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica a seus objetivos;
b) quando for necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta lei;
A alteração unilateral qualitativa está prevista na alínea “a” do inciso I, e a alínea “b”, por sua vez, se refere à alteração quantitativa. A alteração quantitativa influencia diretamente na dimensão (“volume de serviço”) do objeto contratado. Já a alteração qualitativa decorre de modificações necessárias nos projetos ou nas especificações técnicas, sem, entretanto, implicar mudanças na dimensão (“volume de serviço”) do objeto.
Se a Secretaria de Educação de determinado município, por exemplo, contratou o fornecimento de leite em pó integral para compor a merenda escolar dos estudantes, em quantidade de 8.000 kg e divididos em pacotes de 800 gramas e após, decide modificar a forma de entrega para pacotes de 500 gramas, ela realiza uma modificação qualitativa, já que não houve nenhuma alteração em relação ao “volume” da demanda.
Caso fosse a modificação relacionada com a quantidade do objeto do fornecimento, mudando-se de 8.000 kg para 10.000 kg, aí então estaríamos diante de uma alteração quantitativa.
Em relação às alterações quantitativas, nunca houve dúvidas acerca dos limites percentuais fixados pela legislação, já que a lei 8.666/93 previa expressamente os percentuais em seu § 1º:
Art. 65. § 1o O contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício ou de equipamento, até o limite de 50% (cinquenta por cento) para os seus acréscimos.
Assim, nas alterações unilaterais de ordem quantitativa, a referência aos limites era expressa, uma vez que os contratos poderiam ser alterados unilateralmente “quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta lei”.
Já no que se refere às alterações qualitativas, como a lei 8.666/93 não fazia menção à obediência de quaisquer limites, alguns estudiosos do Direito entendiam que não se aplicavam a elas os limites previstos no § 1.º do art. 65 da lei, pelo fato de não haver a previsão em lei para os limites máximos de acréscimo e supressão de valor.
Daí que se dividia a doutrina em duas posições: uma que defendia a não aplicação de limites objetivos para as alterações qualitativas e outra, que sustentava a tese de que as alterações unilaterais qualitativas estavam sujeitas aos mesmos limites escolhidos pelo legislador para as alterações unilaterais quantitativas, previstos no art. 65, § 1.º, da lei 8.666/93, não obstante a falta de referência a eles no art. 65, I, “a”.
O fundamento para referido entendimento residia na necessidade de previsão de limites objetivos e claros em lei, no princípio da proporcionalidade e no respeito aos direitos do contratado.
O TCU se aliava ao posicionamento da segunda corrente, conforme Decisão 215/1999, proferida pelo Plenário, no contexto do processo n. 930.039/1998-0, por meio de consulta formulada pelo Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, dentre outras decisões em casos concretos.
Com a redação do art. 125 da lei 14.133/2021, contudo, não há mais motivos para essa partição que existia na doutrina, vez que o texto da lei agora foi claro em vincular os limites objetivos para as duas espécies de alterações contratuais unilaterais pela Administração Pública. Veja-se:
Art. 125. Nas alterações unilaterais a que se refere o inciso I do caput do art. 124 desta lei, o contratado será obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões de até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato que se fizerem nas obras, nos serviços ou nas compras, e, no caso de reforma de edifício ou de equipamento, o limite para os acréscimos será de 50% (cinquenta por cento).
Agora, o legislador redigiu de forma clara e sem margens para interpretações diversas: “nas alterações unilaterais a que se refere o inciso I do caput do art. 124 desta lei, o contratado será obrigado a aceitar…”.
Sendo as alterações unilaterais a que se refere o inciso I do caput do art. 124, as alterações de ordem quantitativas ou qualitativas, os limites de 25% ou de 50% se aplicarão a ambas.
A meu ver, esse sempre foi o melhor entendimento para o caso.
Da mesma maneira que contratar com a Administração seria bastante arriscado se ela pudesse simplesmente transfigurar o objeto inicial, também haveria esse risco se ela pudesse suprimir ou acrescer, por exemplo, 80% do escopo do contrato.
Portanto, os limites devem ser claros, objetivos e preestabelecidos em lei, pois é a partir deles que o possível contratado dimensiona os riscos que deve suportar, na hipótese de uma alteração unilateral imposta pela Administração.