A exigência de integração de PCD como condição de habilitação em licitações públicas

Por Hudson de Oliveira Cambraia



A nova lei de licitações trouxe importante avanço nas políticas afirmativas relativas à integração das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, considerando que o art. 63, IV, da Lei 14.133/21 dispõe que “será exigida do licitante declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social, previstas em lei e em outras normas específicas”.

Veja-se que o verbo está no imperativo (será), de modo que não está no espectro de conveniência administrativa exigir ou não o cumprimento da regra. É importante considerar que a medida vem em boa hora, visto que, cada vez mais, compreende-se a necessidade de maior integração das pessoas com deficiência na sociedade, desde que respeitadas as suas peculiaridades.

E não se trata de questão fácil e muito menos a novidade legislativa constitui uma concessão do legislador, mas é resultado de um esforço de proporções globais para a integração das pessoas com deficiência. É preciso considerar que o Brasil aderiu à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova York), internalizada no Direito Brasileiro por meio do Decreto n. 6.949/2009.

É importante consignar que a Convenção de Nova York é um marco do direito brasileiro, visto que é o primeiro instrumento internacional ratificado pelo legislativo nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição da República, de modo que o seu texto tem força de Emenda Constitucional. Neste sentido, a Convenção constitui, atualmente, o bloco de constitucionalidade que estabelece os parâmetros de elaboração legislativa compatíveis com a ordem constitucional.

O passo seguinte foi alterar o Código Civil, a fim de retirar a pecha de incapaz das pessoas com deficiência, o que foi feito por meio da Lei n. 13.146/2015, que instituiu o Estatuto das Pessoas com Deficiência. Importante consignar que, nos termos do art. 1º, § 2º, da Lei n. 12.764/2012, a pessoa com Transtorno do Espectro Autista é pessoa com deficiência para todos os fins legais.

Referido bloco legislativo estabeleceu uma série de direitos às pessoas com deficiência, a fim de lhes garantir acesso à vida em sociedade e, principalmente, respeito às suas especificidades e limitações. O que a norma trouxe foi a perspectiva da inclusão, o que exige capacidade de compreensão e adaptação, posto que muitas deficiências exigem adaptações físicas, sensoriais e de acesso.

O ponto central é criar mecanismos de pertença e inclusão social.

Nesta mesma esteira, a nova Lei de Licitações estabelece que a Administração deve exigir das empresas que cumpram a lei e tenham em seus quadros os percentuais fixados para pessoas com deficiência. Veja-se que a Lei de Licitações não cria obrigações novas, mas exige que as empresas demonstrem que cumprem a legislação existente.

Esses limites, atualmente, são previstos no art. 93 da Lei n. 8.213/91, que estabelece as regras de previdência social. Importante consignar que o referido dispositivo é da redação originária da lei, mas simplesmente ignorado por décadas, ante a ausência de instrumentos efetivos de fiscalização e integração real das pessoas com deficiência.

Conforme o dispositivo, a empresa com até 100 empregados é dispensada de contratar pessoa com deficiência, o que não significa que não possa fazê-lo. Entre 100 e 200 empregados, a reserva é de 2%; entre 201 e 500, a reserva é de 3%; entre 501 e 1.000, a reserva é de 4%; e a partir de 1.001, a reserva é de 5%.

A grande dificuldade de cumprimento do dispositivo em questão e de todas as demais regras aplicáveis à legislação para as pessoas com deficiência é que o Brasil ainda padece de grave déficit informacional. Conforme dados oficiais, o Brasil possui cerca de 45 milhões de pessoas com alguma deficiência, o que permitiria inferir que há amplo espaço para preenchimento dos requisitos em questão.

Até porque é preciso considerar que a maioria massiva das empresas brasileiras não possuem mais do que 100 empregados, de modo que o número de vagas obrigatórias, nem de longe, alcança o número de pessoas com deficiência. Entretanto, tanto de parte dos órgãos governamentais, quanto das empresas e das pessoas com deficiência, há grande lacuna de conhecimento acerca destas regras.

A maioria das pessoas com deficiência não conhece seus direitos; a maioria das empresas não fazem a mínima ideia de como integrar pessoas com deficiência aos seus quadros. Por fim, o governo não possui políticas públicas consistentes para promover esta fusão de forma qualitativa.

Grandes empresas, muitas vezes realmente interessadas em cumprir a legislação, promovem a abertura das vagas para preenchimento de pessoas com deficiência e não recebem candidatos suficientes. Outras tantas recebem os candidatos e não possuem o preparo suficiente para incluir verdadeiramente a pessoa com deficiência nos seus quadros, o que pode gerar efeitos negativos, perda de mão de obra, baixa produtividade e, por consequência, abandono do cargo.

Incluir exige compreender a deficiência de forma empática e consciente de que é um processo complexo e que exige a participação de todos os envolvidos.

Obviamente, enquanto esse processo não for refinado por todos os atores, ainda haverá um número indeterminado de pessoas com deficiência excluídas do mercado de trabalho e outro tanto de empresas buscando essas pessoas sem conseguir preencher suas vagas.

Neste cenário, claramente a empresa que, genuinamente, busca cumprir a norma não pode ser punida por não conseguir cumprir o número de contratações exigidas pela lei. Enquadra-se aqui na conhecida situação de força maior excludente de responsabilidade, o que, obviamente, deve ser demonstrado pela empresa interessada.

Via de consequência, a Lei de Licitações se une a um amplo rol normativo de leis que buscam incluir as pessoas com deficiência ao mercado de trabalho e à sociedade em geral. Entretanto, como um processo que é, sua leitura deve ser fundada em proporcionalidade e razoabilidade, a fim de evitar a punição daqueles que efetivamente buscam a inclusão e o benefício daqueles que tratam a norma como mera formalidade superável.

Por fim, cabe a todos os envolvidos buscar, genuinamente, compreender o que significa a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho e na sociedade. Abrir as portas da empresa e convidar o cadeirante a subir as escadas não é inclusão; contratar o autista e não lhe proporcionar o ambiente reservado para a execução das suas atividades, submetendo-o a todo tipo de sobrecarga sensorial, não é inclusão; atribuir tarefas incompatíveis com a deficiência também não é inclusão.

Claramente, duvidar da capacidade laborativa da pessoa com deficiência porque ela não trabalha como “todo mundo” trabalha também não é inclusão. Inclusão é aprender a enxergar o melhor potencial que o outro pode oferecer; compreender que a capacidade de concentração do autista em um ambiente favorável pode ser extraordinária; que a ausência de mobilidade dos membros inferiores eventualmente pode ser compensada por um refinamento diferenciado dos posteriores e assim por diante.

A legislação será plenamente aplicada quando a regra for percebida como um projeto de sociedade inclusiva e não como uma burocracia a ser vencida.