A Exequibilidade das Propostas em Licitações Públicas: Análise da Lei 14.133/2021

Por Lis Moreira


A exequibilidade das propostas é tema ainda bastante recorrente no cenário das licitações públicas, tendo o legislador tentado estabelecer alguns critérios sobre o entendimento a ser adotado diante de casos concretos.

A Lei 14.133/2021 não se limita a prever um critério objetivo para aferição da inexequibilidade das propostas referentes a obras e serviços de engenharia.

O art. 59, §4º, diz que: “no caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”.

No entanto, o inc. IV do mesmo artigo determina a desclassificação das propostas que “não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração” e o § 2º do art. 59 acrescenta que “a Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo”, deixando explícito o poder-dever de promover diligências relacionadas à avaliação das propostas, ainda que com valores inferiores a 75% do valor orçado.

Sobre o tema, convém mencionar os ensinamentos de Marçal Justen Filho, proferidos ainda sob a égide da Lei 8.666/93, mas que ainda podem ser aplicados inteiramente:

Não se afigura defensável, porém transformar em absoluta a presunção do § 1º. Se o particular puder comprovar que sua proposta é exequível, não se lhe poderá interditar o exercício do direito de apresentá-la. É inviável proibir o Estado de realizar contratação vantajosa. A questão é de fato, não de direito. Incumbe o ônus da prova da exequibilidade ao particular. Essa comprovação poderá fazer-se em face da própria Administração, pleiteando-se a realização de diligência para tanto.

(…)

Subordinar o direito do licitante à prévia impugnação ao orçamento apresentado é violar o princípio da isonomia. Todos os demais licitantes estariam advertidos que um outro concorrente irá formular proposta de valor mais reduzido. Estaria comprometida a igualdade dos participantes. Por outro lado, seria um despropósito imaginar que a omissão ou silêncio dos licitantes tornaria válido orçamento excessivo ou desvinculado da realidade econômica. Por tais motivos, reputa-se cabível que o particular, ainda que não impugne o valor orçado, defenda a validade de proposta de valor reduzido, mas exequível.

Ainda nas palavras de Marçal Justen Filho:

Comporta uma ressalva prévia sobre a impossibilidade de eliminação de propostas vantajosas para o interesse sob tutela do Estado. A desclassificação por inexequibilidade apenas pode ser admitida como exceção, em hipóteses muito restritas. Nesse ponto, adotam-se posições distintas das anteriores perfilhadas. O núcleo da concepção ora adotado reside na impossibilidade de o Estado transformar-se em fiscal da lucratividade privada plena admissibilidade de propostas deficitárias. (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 12ª ed. São Paulo: Dialética, 2008, p. 601)

Acrescenta, ainda o doutrinador, ao interpretar o disposto no art. 48, II e § 1º, a e b, da Lei 8.666/93, in verbis:

5.1)   A distinção entre inexequibilidade absoluta (subjetiva) e relativa (objetiva).

Discorda-se do entendimento de que todas as hipóteses de inexequibilidade comportam tratamento jurídico idêntico. Ao contrário, deve impor-se uma diferença fundamental, destinada a averiguar, se a proposta pode ou não ser executada pelo licitante, ainda que seu valor seja deficitário. A questão fundamental não reside no valor da proposta, por mais ínfimo que o seja – o problema é a impossibilidade de o licitante executar aquilo que ofertou.

A formulação desse juízo envolve uma avaliação da capacidade patrimonial do licitante. Se ele dispuser de recursos suficientes e resolver incorrer prejuízo, essa é uma decisão empresarial privada. Sob esse ângulo, chega a ser paradoxal a recusa da Administração em receber proposta excessivamente vantajosa.

5.2)   A imposição constitucional: admissibilidade de benefícios em prol do Estado.

Enfim, seria inconstitucional o dispositivo legal que vedasse a benemerência em prol do Estado. Impor ao Estado o dever de rejeitar proposta gratuita é contrário à Constituição. Se um particular dispuser- se a aplicar seus recursos para auxiliar o Estado, auferindo remuneração irrisória não pode ser vedado por dispositivo infraconstitucional. Cabe admitir, portanto, que o Estado perceba vantagens e benefícios dos particulares. (…)

Em que pese a maior parte da jurisprudência ter sido proferida ainda sob a égide da Lei 8.666, acórdãos recentes analisaram a questão já com enfoque nas regras da Lei 14.133, corroborando não só o poder-dever da Administração Pública de promover diligências, como também o entendimento de que a avaliação das propostas deve se dar com cautela, pois muito dificilmente a Administração conseguirá compreender as peculiaridades de determinada atividade econômica, e todo o racional que envolve a formação do preço, tal qual o licitante.

Iremos destacar abaixo, alguns trechos de Acórdãos recentes do TCU, em que a posição acima citada vem sendo declarada reiteradamente:

Além disso, o Tribunal, em sua jurisprudência (Acórdãos 325/2007, 3092/2014, ambos do Plenário), apresentou exemplos de estratégias comerciais que podem levar uma empresa a reduzir sua margem de remuneração incluída em sua proposta de preços, a saber: (i) interesses próprios da empresa em quebrar barreiras impostas pelos concorrentes no mercado; ou (ii) incrementar seu portfólio; ou ainda (iii) formar um novo fluxo de caixa advindo do contrato.

Em outras palavras, ainda que a proposta da licitante tenha sido inferior ao patamar de 75% do valor orçado pela Administração, a empresa pode ter motivos comerciais legítimos para fazê-lo, cabendo à Administração perquiri-los, dando oportunidade ao licitante para demonstrar a exequibilidade do valor proposto. (Acórdão 465/2024 – Plenário – Data da sessão: 20/03/2024).

24. O melhor tratamento da matéria parece remeter ao entendimento de que não é papel do Estado pugnar pela exequibilidade das propostas, exercendo uma espécie de curatela dos licitantes. Ao tutelar a lucratividade dos proponentes e a exequibilidade das propostas, o Poder Público interfere indevidamente na seara privada criando restrições indevidas para o setor produtivo praticar os preços que bem entender e, por conseguinte, também arcar com as consequências de suas decisões.

25. Ainda que fosse possível estabelecer em lei regras realmente eficazes para analisar a exequibilidade, tais regras não poderiam captar diferentes tipos de decisão empresarial. A título de exemplo, cito o caso do particular que oferta preço inexequível porque deseja obter um determinado atestado de capacidade técnica para conseguir entrar em um novo mercado. É o custo de aquisição de um novo cliente, que muitas vezes o setor produtivo está disposto a incorrer. Em outro exemplo, o particular poderia ofertar preço inexequível por necessidades de obter caixa ou desovar estoques de produtos que estão prestes a perecer ou que não terão outra serventia.

26. Existem outros benefícios indiretos ao particular além dos preços ofertados na licitação. Cita-se o exemplo de um fabricante de veículos que tem um retorno positivo de sua imagem ao fornecer viaturas para as forças policiais, assim como os futuros ganhos que terá ao vender as peças de reposição e realizar a manutenção das viaturas. Esta própria Corte de Contas recentemente obteve em comodato, de forma totalmente gratuita, a utilização de dois veículos de alto custo para uso de suas autoridades. Qualquer regra de exequibilidade que se preveja em lei dificilmente captará todas as nuances da atividade empresarial privada. (Acórdão 803/2024 – Plenário – Data da sessão: 24/04/2024).

Diante das considerações apresentadas, é evidente que a exequibilidade das propostas em licitações públicas, conforme delineado pela Lei 14.133/2021, deve ser analisada com cautela.

A jurisprudência e a doutrina corroboram a necessidade de um equilíbrio entre a proteção dos interesses públicos e a flexibilidade para aceitar propostas vantajosas que, mesmo apresentando preços significativamente baixos (em relação ao orçamento de referência) possam ser justificadas por estratégias comerciais legítimas das empresas. Este entendimento é essencial para evitar a eliminação indevida de propostas que possam trazer benefícios ao Poder Público.

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